Medo e Delírio,
de Terry Gilliam


Fear And Loathing In Las Vegas, EUA, 1998

Fear And Loathing in Las Vegas, de Terry Gilliam, é um problema, um filme-problema. Não se pode dizer que seja um filme bom ou um filme ruim. Não cabe, aliás, nem mesmo o debate a esse respeito. Na verdade, no sentido estrito com que se faz essa análise habitualmente, é muito simples decidir: é um filme ruim, mal-realizado. Mas essa questão não se coloca (o que não significa que o filme esteja para além dela).

O que parece mais interessante, e importante, é pensar naquilo que faz do filme algo singular (e que faz dele um filme importante, ao mesmo tempo que um filme ruim). Trata-se da forma narrativa adotada pelo roteiro (e, em conseqüência, pela montagem). A peculiaridade do que fez Terry Gilliam (e que não está aliás contida no livro que origina o filme) é a opção por não fazer um filme lisérgico, nem um filme sobre o lisérgico, mas sim um filme absolutamente regido pelo lisérgico. Não aparecem pessoas viciadas na tela (apesar de que é praticamente a única coisa que vemos), o que aparece é simplesmente uma série de nadas, de desconexões, de imagens bizarras, de delocalização sígnica, de enigmas e pistas falsas. O mais importante do que acontece em Fear And Loathing é o fato de que nenhum signo significa nada.

Nesse sentido, ele está mais parecido com um livro como Mil Platôs (de Gilles Deleuze e Félix Guattari) ou outra aventura filosófica que proponha o fim da linguagem que do próprio romance, que de qualquer narrativa. Ele não é narrativo, não é descritivo, não é nada, é puro fluxo. Talvez ele, no meio disso, deixe bolhas, que sejam os personagens, mas eles também pouco importam.

Aquela impressão formalista apesar de transgressora que se tem no nouveau roman, aquela nítida marca de desmotivação que está em Marienbad, ela aparece ao ver o medo e o nojo de Gilliam. Cada cena é início e fim em si mesma, tudo sem motivação. Nesse sentido, é um filme antológico. Só por ser como é e tocar na abertura "My favorite things", a musiquinha de A Noviça Rebelde já se tem a impressão clara do que estamos falando.

Mas a impressão de incômodo com a montagem é inevitável. E nem é mesmo o incômodo insano provocado por Lost Highway, de David Lynch, ou outros incômodos que fazem sorrir. É incômodo mesmo, desagrado. Há cenas de uma construção absolutamente "infeliz" (como a das iguanas no bar).

Mas a pergunta a ser feita é se (esse) filme tem que ser agradável. A pergunta é importante porque nenhuma das cenas do filme se conecta. Fosse montado de outra forma, em outra ordem, o filme seria o mesmo, porque seu elemento central é o caos, a falta não apenas de ordem, mas de qualquer organicidade. A certa lógica que se impõe a ele (o personagem central em uma viagem lisérgica), ela mesma não é tão necessária e é radicalmente inútil para tornar o filme uma história ou algo digestivo.

Então, é preciso mesmo perguntar se o filme tem que ser agradável, porque Fear and Loathing é um filme que não se quer ver nunca mais na vida (como não se quer desmaiar, ou ter um ataque de ausência, ou qualquer outra mal súbito, uma vez que se tenha). De fato, o filme é uma espécie de mal súbito, de mal-estar, de inquietação. A absoluta inveracidade das interpretações (descaradamente caricatas e estereotípicas, feita por um elenco de estrelas em aparições bissextas e disfarçadas, como Ellen Barkin, que põe a Cameron Dias no chinelo) é uma marca do quão o filme é pouco conectado com a tradicional crítica Easy Rider que se poderia esperar de um filme com a sinopse "Road movie. Dois amigos toxicômanos viajam para Las Vegas com uma maleta cheia de drogas e se esbaldam em aventuras lisérgicas". O filme não tem nada de Leaving Las Vegas (aquele em que Nicolas Cage bebia feito um gambá) ou de nenhuma outra aventura sobre tóxicos. Ele é na verdade sobre o signo, sobre o símbolo e sobre como ele pode ser desconectado de seus significados. Nada importa, nada se vê, nada se ouve, nada se pensa, aliás, diante de tamanha alucinação. É o corpo sem órgãos do cinema!

Alexandre Werneck