A Menina da Baía dos Anjos,
de Manuel Pradal


Marie Baie des Anges, França, 1997

Os primeiros planos de um filme são algo sempre fascinante, pois o espectador está ainda começando a se familiarizar com as regras do jogo no qual irá embarcar. Ainda está por ser feito um estudo específico sobre as várias formas pelas quais os diretores jogam com esta "virgindade sensorial" do espectador, onde tudo vale, mas ao mesmo tempo pouco é racionalmente absorvido, até pela falta de contextualização que leva muitas vezes inclusive a uma sensação em quem assiste de precisar rever o filme, assistindo o início com os olhos "educados" de quem já sabe o que virá depois. No entanto, mesmo sem se aprofundar, pode-se distinguir pelo menos três formas, já tornadas clássicas, de se iniciar um filme. Muitas vezes começa-se com um mistério, uma charada: uma cena pouco explicada que vai se revelar em sentido ao longo do filme. Pode ser um flashback, até mesmo um flashforward. Geralmente nestes casos, revemos a cena, já contextualizada, mais tarde na projeção (economizando inclusive a tal segunda ida). Outra forma (que Billy Wilder e François Truffaut, para citar dois, usavam à perfeição) é a de, com poucos planos introduzir a história e seus protagonistas de uma forma tão completa que, em poucos minutos e imagens, já nos sentimos ambientados e prontos para a história a seguir. E, finalmente, existe o formato classicamente ligado ao cinema europeu, mas de jeito nenhum restrito a ele, de começar o filme com uma imagem que, muitas vezes, não possui nenhuma conexão, seja imediata ou posterior, com a narrativa que se seguirá. Geralmente, esta imagem é uma síntese do filme, muitas vezes uma metáfora. Não introduz os personagens nem a trama, mas sim as idéias do diretor (por isso, ligada muito a "política dos autores"). Exemplos clássicos são o início de Andrei Rublev, de Tarkovski, ou de A Queda de Ruy Guerra, falando de Brasil.

Tudo isso para falar do início de A Menina da Baía dos Anjos que, sem dúvida, se insere nesta última categoria. E seria impossível começar uma análise do filme sem passar por isso, pois Manuel Pradal realizou muito mais um ensaio poético sobre um tema, do que um filme narrativo propriamente dito. E seu tema está exposto todo ali na primeira cena: enquanto um barco passeia pela baía do título, um guia turístico explica o nome do local. Refere-se aos tubarões que lá habitavam, que, embora ferocíssimos, serviam de proteção e não de ameaça aos habitantes, pois mantinham distantes os invasores que precisassem atravessar a baía. Eram, portanto, anjos da guarda. Usando os tubarões como metáfora, o filme na verdade pega esta imagem fascinante de anjos sangrentos, e a aplica aos jovens em geral. Encontra neles a inocência e a violência sem paralelos e filtros. E, em torno disso, estrutura seu ensaio. Beleza, crueldade, amor, morte, aproximação e distanciamento. A imagem que se segue às descritas só aprofunda o exposto: um jovem que é a própria encarnação do anjo (louro, de cabelos encaracolados) é brutalmente morto por um tiro que vem, aparentemente gratuito, da arma do outro jovem que parecia tentar ajudá-lo a sair da água. E, a partir daí, o filme dá voltas em torno deste mesmo tema: jovens cujo comportamento passa sem explicação do confronto ao carinho e vice versa, sem parar.

É claro que simplesmente uma boa idéia não assegura um bom filme. E, embora, possua inúmeras belas idéias, A Menina da Baía dos Anjos não chega a ser de todo bem sucedido. Mas, ainda assim, deve-se louvar algumas características que o diretor consegue impor ao seu filme. Uma delas, talvez a principal, é a completa desestruturação temporal que quebra qualquer expectativa de uma relação causa-efeito entre as diferentes seqüências do filme. O filme vagueia com liberdade pelo tempo, e muitas vezes não deixa claro se andamos linearmente para a frente, ou se damos voltas e pulos no tempo. Na verdade, isso não parece ter muita importância, pois não se pode julgar o impulsivo e inconstante comportamento dos adolescentes em cena por relações causais diretas. Da mesma forma, nunca se sabe exatamente de onde vêm aqueles personagens, nem que cidade é esta em que habitam. Quase que ao longo de toda a projeção só se vê jovens em cena, como se estivéssemos num universo paralelo. Da mesma forma, não há como achar uma relação cronológica do filme com a realidade, pois no início ele parece dar pistas de acontecer no passado (anos 50 talvez) pelos figurinos, carros, até mesmo comportamento dos personagens, e logo em seguida surge uma corrida de Fórmula 1 com carros modernos.

O que Pradal talvez não contava é que, para se montar um ensaio em longa metragem, é necessário um domínio do tempo cinematográfico que ele ainda não possui. Filma belissimamente (a cena na garupa da lambreta vale um filme inteiro) e monta seqüências muito bem (tudo que acontece na ilha é de uma força impressionante, no contato dos dois protagonistas com o amor, a natureza e a violência), trabalha a trilha sonora à perfeição, e realiza uma direção de atores (além do casting perfeito, claro) primorosa com o casal principal. No entanto, o filme como um todo não se sustenta. Passado o fascínio inicial pelo formato buscado, ele perde a capacidade de surpreender em crescendo, e acaba sujeito a inúmeros altos e baixos ao longo da duração. E assim os jogos que propõem (como o uso dos vermelhos ao longo do filme), não dão a organicidade necessária ao filme. Mas, ainda assim, é certamente um filme imperfeito com muito mais a ser visto, discutido e apaixonado que muitos filmes "perfeitos".

Eduardo Valente