O
Homem que não Estava Lá,
de Joel Coen
The
man who wasn't there, EUA, 2001
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O cinema dos irmãos Coen sempre foi altamente referencial, não
apenas ao próprio cinema, mas principalmente aos mitos e símbolos
do imaginário norte americano como um todo. Não por acaso
em todos os seus filmes podem ser traçados uma série de
paralelos, influências e homenagens. Sua chave ao trabalhar estes
elementos sempre variou e combinou a sátira com a devoção
sincera e apaixonada a todos estes universos intrinsecamente americanos
e cinematográficos.
Neste seu novo filme,
esta linha não só está presente, como aprofundada
de forma radical. Trata-se de uma releitura do cinema noir, que
aliás já havia servido de elemento principal em dois outros
trabalhos da dupla, Gosto de Sangue e Ajuste Final (e pode
ainda ser encontrado em menor medida em vários dos seus outros
filmes e personagens). O primeiro era praticamente uma atualização
de temas e formas narrativas do gênero para os dias modernos, enquanto
o segundo volta no passado para contar uma trama de criminosos. Neste
novo trabalho, o mergulho é efetivamente radical, assumindo não
só a referência como a apropriação completa
mesmo de época, estética e narrativa. Trata-se de um autêntico
film noir feito em 2001. É claro que este pequeno detalhe
da data faz toda a diferença, porque nas décadas de 40 e
50 não se tinha o olhar distanciado sobre o gênero e seus
signos. Então, ao mesmo tempo que se trata de um representante
autêntico de gênero, isso deve ser visto sempre através
do filtro de um olhar de espectador analítico deste tipo de cinema.
Ou seja, ele é sim um filme noir mas é muito mais,
de fato, sobre o que é ser um filme noir.
Esta transição
que parece óbvia representa o grande problema do filme. Porque
na passagem metalinguística exigida, o filme perde necessariamente
a "pureza", digamos assim, do que seja um representante do gênero.
Auto-consciente, ele pede do público que esteja sempre trabalhando
em dois níveis: acompanhando a narrativa, mas também interessado
e fascinado pela reconstrução de um passado do cinema. E
conseguir desta forma sair ileso do processo é um desafio que os
Coen não solucionam a contendo. Num certo momento, o filme passa
a ser mais sobre eles fazendo o filme do que sobre a história contada,
e neste caso específico isso não é positivo.
E o principal agente
deste processo é um dos elementos de linguagem fundadores do cinema
noir: a narração em off. Que aqui possui especial
graça inicialmente por representar a voz de um personagem que não
gosta muito de falar, então a narração do filme fala
por ele (de que posição, só descobrimos no final).
Mas, este narrador não é apenas um homem envolvido numa
trama criminosa. Caracterizado como nosso guia do filme pelos irmãos,
ele possui um posicionamento excessivamente frio e distanciado da própria
narrativa que conta. Mais do que a voz daquele homem, ele é a voz
dos autores. E, com isso, toma um posicionamento por demais acima daqueles
acontecimentos, quase como um crítico de cinema observando e comentando
uma obra pronta. Só nas cenas finais é que vemos isso de
forma clara, mas o efeito é inegável: o tipo de análise
e síntese que o narrador trabalha são por demais metalinguísticos,
e não soam como sendo dele. As reflexões francamente filosóficas
que fecham o filme soam longamente pensadas, e absolutamente desnecessárias,
pois em desacordo com a posição do personagem. São
uma análise do que significavam os personagens do cinema noir,
mas nos exemplares autênticos esta análise era feita a
posteriori lendo-se os elementos narrativos diretos e de conteúdo
do filme. Mas por ser aqui a voz do personagem que também a "voz"
do filme, este termina por passar a sensação de um frio
estudo de gênero, mais do que qualquer coisa.
É fato que
como estudo de gênero, é riquíssimo. Desde a trilha
sonora fenomenal de Carter Burwell até a fotografia em p/b de Roger
Deakins, que não é apenas bela, mas cheia de significados
no seu jogo constante de luzes e sombras e consegue com poucos segundos
de imagem muitas vezes solucionar ou apresentar uma situação
completamente. Também os trabalhos de reconstituição
(cenografia, figurinos, maquiagem e cabelos) são estupendos, mas
isso é chover no molhado numa produção dos irmãos.
A trama também
é exemplar, cheia de homens comuns em circunstâncias incomuns,
traições, mortes. Mas este certamente não é
o tema central do filme, e sim a luta de um homem para escapar justamente
da sua sina de ser "comum". Buscar uma última chance de conseguir
algo mais na vida, deixar sua marca. Por mais que ele tente, porém,
ao final ele continua sendo "um fantasma, O Barbeiro". Billy Bob Thornton
interpreta lindamente o calmo desespero com que seu personagem vai perdendo
o controle sobre seu próprio destino. Muitas vezes em silêncio,
mas quando fala sua voz passa o mesmo contraste entre o controle e o desespero
completo.
O que o personagem
(e por tabela, o filme) possui de mais peculiar ao gênero em que
se insere é a sensação de que há algo de podre
por baixo daquela "small America" formada pelas barbearias,
restaurantes, casas de classe média no subúrbio. Não
o "podre" desta mais recente leva de filmes (pensamos em Todd
Solondz, Beleza Americana) que quer expôr uma suposta falência
doentia inerente ao sistema. Mas sim um desconforto, uma sensação
de incompletude do modelo. Este clima, quietamente e sem qualquer exagero,
está no filme dos Coen, especialmente na narração
em off dos momentos sobre a relação com a mulher, com o
trabalho.
Enquanto encena estes
elementos dentro de sua trama, o filme é quase perfeito. Quando
reflete sobre si mesmo, torna-se pernóstico, distanciado. E isso
acontece com hora marcada no filme: um acidente de carro com um efeito
visual na roda absolutamente moderno. Antes disso, os Coen demonstram
todo seu talento em criar personagens fascinantes e marcantes, em montar
cenas de diálogo absolutamente inesperadas, hilárias e com
falas inteligentíssimas. Na maioria dos seus filmes, o protagonista
sempre passa por estas cenas de diálogo com personagens secundários
que pouco aparecem, e que marcam o filme. Aqui é quase um mantra,
onde Thornton conversa separadamente com quase todo o elenco, e em todos
estes diálogos há um momento de belas atuações,
filmagem e roteiro (isso acontece com o advogado, com o assassinado, com
a esposa deste, com o picareta, com a pianista, com o professor de piano,
com o pai da menina, todos tendo sua cena para brilhar).
Na condução
da trama há alguns efeitos belíssimos também, como
o crime principal do filme aparecendo quase como a elipse de uma cena,
de um trecho da narração. Sobram comentários espirituosos,
desde a lentidão do processo penal (uma ironia com os filmes de
tribunal) até o bombardeio nuclear americano no Japão, temas
que certamente você não veria nos anos 40.
E é nesta brincadeira
de reviver uma época e um gênero ao mesmo tempo em que os
retrata com os olhos de hoje que os Coen acabam se perdendo. A trama torna-se
menos importante que sua interpretação excessivamente deglutida
pela narração, os personagens perdem em interesse para tornarem-se
apenas figuras destacadas para representar um clichê. E o filme
acaba soando como uma saborosa aula descritiva do cinema de uma época.
Elucidativa e interessante, sem dúvida, mas sem adicionar algo
ao que já estava lá. Um filme que não erra nunca,
mas justamente na fria distância de sua calculada perfeição,
erra de forma brutal.
Eduardo Valente
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