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Velozes + Furiosos,
de John Singleton
2 Fast 2 Furious, EUA,
2003
Valor de Face
Recarregar
parece ser a palavra de ordem. Recarregar (reload) é da
ordem da repetição: traremos novamente mais do mesmo, só
que o mais é mais ainda, e o mesmo será um mesmo um pouco
modificado, para dar gosto. É uma estratégia, às
vezes funciona como proposta artística, às vezes é
apenas um eixo mercadológico para ganhar mais alguns (muitos) barões
e encher a garotada de mitologia meta-judaico-cristã barata .Em
todo caso, "recarregar" não foi a guinada que tomou John
Singleton ao herdar de Rob Cohen o filme Velozes e Furiosos. As
comparações com Matrix, a série dos irmãos
Wachowski, procedem em alguma medida: mais do que Tomb Raider e
Resident Evil, os filmes iniciais foram as duas pontas de lança
da abertura do cinema de Hollywood para os jogos de videogame. Matrix
derivava, evidentemente, dos jogos de luta à Street Fighter para
criar um território vasto, suntuoso, e devolvê-lo ao videogame
e talvez o gozo com os personagens e suas perambulações
pela matriz sejam mais interessantes até fora da tela do que dentro
dela. Velozes e Furiosos, por sua vez, é uma estratégia
antropofágica do cinema de explorar os fenômenos dos carros
de velocidade e do poder que eles proporcionam a partir de jogos tão
diferentes com GTA e o mítico Enduro, protótipo de todo
jogo de carros. De comum aos dois filmes-série, um dado bastante
significativo: terem trazido ao cinema um gozo em estado puro, imediato,
coisa que há muito tempo o cinema americano deixava relegada às
comédias. Tanto em Matrix como em Velozes e Furiosos,
o prazer visual era imediato, sem precisar passar pela mediação
cognitiva da psicologia para se fazer signo. Essa gratuidade exploit
levada para "as massas" fazia a importância e a graça
desses dois filmes.
Hoje,
2003, o cinema americano ainda apresenta pouco interesse no exploit
de massas apesar, naturalmente, de haver Austin Powers,
As Panteras, os Farrelly... Entretanto, "recarregar"
algo que participa até do vocabulário dos videogames
na passagem de um jogo ao outro ou ao plugar o cartucho de memória
está na ordem do dia. Recarregar uma mitologia parece uma
estratégia certeira para Matrix, mas para Velozes e Furiosos
seria a ruína. Não só porque Rob Cohen e Vin Diesel
estão em outra, mas acima de tudo porque o primeiro filme da série
era um impressionante chamado à ordem, uma forma de dizer que está
tudo bem em levar a vida de forma radical desde que isso sirva de alguma
forma ao governo (aliás, assim como XXX Triplo X,
que é sob esse aspecto quase um filme de realismo socialista ou
um anúncio de alistamento militar). Em + Velozes + Furiosos,
recarregar não é suficiente: é preciso descambar
para o outro lado, passar de agente policial a vagabundo inconseqüente,
respeitar a lógica da velocidade e da liberdade que essa velocidade
garante para "ultrapassar" (o vocabulário aqui é
automobilístico, não hegeliano) o primado da lei e estabelecer
o "esportista radical" como desviante, na medida em que qualquer
desejo extremado sermpe será visto por qualquer estado como egoísta,
suicida ou subversivo. Em + Velozes + Furiosos, a lógica
é do gueto (e talvez por isso a escolha de John Singleton): os
automobilistas, que sempre se escondem da polícia para desenvolverem
suas atividades, quando chamados a namorar o estado, comportam-se como
um grupo homogêneo que luta por seus próprios direitos e
por algumas vantagens pessoais a ficha policial limpa, nesse caso
, ao contrário da estratégia de X9 do primeiro filme
(Paul Walker se infiltrando no meio dos grupos de racha para descobrir
uma gangue criminosa), que minava grande parte de seu interesse.
Uma das
maiores graças de Velozes e Furiosos aí incluídos
os dois filmes é a arte da reciclagem. Assim como se pega
em carros para retrabalhá-los a partir da sucata, podemos pegar
a hipervelocidade das naves de Guerra nas Estrelas e transformá-las
num efeito de trip psicodélica quando os carros envenenados
engatam o botão de consumo dos balões de nitrogênio
(esse efeito acontece só no filme de John Singleton). Nada estranho
vindo de um filme estrelado por um herói reciclado (Paul Walker
é impressionantemente parecido com Rob Lowe) com uma heroína
coadjuvante de uma beleza bastante derivativa, algo entre Cindy Crawford
e Jennifer Lopez. Nessa reciclagem, não há acesso à
reconstrução de uma nova ordem, a criação
de uma mitologia feita com os cacos das mitologias antigas (algo que Matrix
não só parece fazer, mas exclamar a todo instante que faz);
a reciclagem aqui vale apenas pelo que é, assume-se somente por
seu valor de face (face value), sem um signo que remete a outro
onde o herói deve aprender a codificar "certo" para descobrir
a porta de sua salvação. Contra um cinema que ficou pesado
demais de símbolos e significações, só o valor
de face parece ser uma arma suficientemente poderosa. E prazerosa, acrescente-se.
John
Singleton parece se adequar muito melhor do que Rob Cohen ao projeto da
série. Para Rob Cohen, filmar carros em alta velocidade é
utilizar uma montagem fragmentada que inutiliza os espaços à
maneira dos videoclips na medida em que um espaço vale tanto
quanto qualquer outro, porque é desprovido de valor próprio,
densidade, clima, etc. , ajuntando no áudio trechos ínfimos
de músicas techno e bigbeat que se acavalam umas
nas outras, criando um sentimento de confusão. Para John Singleton,
é da natureza de um gozo: tempo e espaço assumem uma outra
densidade, mas essa densidade não é da natureza da falta
de padrões, e sim de uma outra padronagem que se constitui, afetiva
(daí esse efeito guerra nas estrelas, que ganha um efeito
de trip não muito diferente dos clichês visuais
da ingestão de um ácido lisérgico).
Mas o
grande avanço que é + Velozes + Furiosos em relação
a seu anterior está na relação com o poder. Porque
ser um piloto de rachas e trabalhar para o governo simplesmente não
cola. E não cola porque trai a natureza de um estilo de vida conjurado
pelo modelo oficial e transformado em gueto. Assim, Paul Walker é
nessa "parte 2" apenas um aventureiro, um piloto de rachas que
negocia com o governo sua situação legal. Como em toda situação
desse tipo, o governo tem a obrigação de vigiar (instala
mil aparelhos nos corpos e nos carros de seus dois agentes) e os "malandros"
tem a obrigação de fugir da vigilância, enganar seus
empregadores para mostrar que não são dependentes deles,
mostrarem-se mais espertos que eles e comprovar seu valor de proscritos
independentes. + Velozes + Furiosos, assim, é um dos maiores
elogios à malandragem, à desobediência nada civil,
realizados nos últimos anos, Hollywood ou fora. Mais interessante,
até, que o determinista Boyz N The Hood, que julgava impossível
sair da criminalidade uma vez estando dentro. Aqui, a malandragem deriva
não de uma opção imoral da parte de indivíduos
visando o lucro próprio, mas da retomada de um lugar que jamais
deveria ter deixado de ter pertencido a eles (e, aí, pouco importam
os meios pelos quais eles o conseguem). Vale o escrito (o dinheiro), vale
a face (os carros, todos belíssimos e levados à sua única
condição, de fetiches supremos). + Velozes + Furiosos,
espécie de Crash ensolarado, revela aí seus limites
(gozo imediato não prolonga futuro, e a forma do filme não
contribui em nada para fazer desse instante um momento supremo ou dar
a ele um estatuto de perenidade) mas também sua graça.
Ruy Gardnier
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