Assunto de Meninas,
de Léa Pool

Lost and delirious, Canadá, 2002


Há filmes com homossexuais e há filmes sobre homossexuais. No primeiro caso, a homossexualidade, em geral, define os personagens. Eles não existem para além de suas opções na cama. Na segunda linhagem, a opção sexual, também em linha geral, é seu inferno. Eles não existem para além do sofrimento de serem diferentes. Assunto de Meninas é do segundo time, mas, ao contrário do redutor título em português, não faz a linha "resistência militante". Ao contrário do que imagina o distribuidor, e em linha oposta às conclusões de alguns resenhistas, que direcionam a história a um gueto de jovens lésbicas da classe média alinhadas à cena cultural de suas cidades, o resultado é dirigido a quem não bate cartão no MIX Brasil e não conhece a cartilha do planeta GLS. Pois é justamente essa intenção de saltar o muro do gueto que ocasiona alguns dos pontos mais questionáveis dessa obra tão irregular.

A começar pela narradora-testemunha que, porta-voz do filme e ponte com o espectador, observa tudo ao redor sem se envolver. Ela é uma adolescente calada e sem carisma que, recém-chegada a um colégio interno de mocinhas, assiste o romance de suas duas colegas de quarto. Vê as garotas trocando carícias sob os lençóis e ouve seus abafados sussurros durante a noite. Arregala os olhos, mas não as julga. Nada a incomoda, aparentemente. É uma não-personagem. Ela só está na tela para, sendo heterossexual vacinada contra contaminações e influências de seu meio, criar identificação com o público. Com o público leigo, digamos assim. A narradora é "normal". Representa o status quo. Se funciona como truque de mercado (se é que funciona) a opção revela-se dramaticamente equivocada. Em vez de aproximar o espectador das protagonistas, leva-nos a vê-las sempre como as "outras".

O procedimento se enquadraria, aparentemente, em uma postura política. Mantendo distância entre público e personagens, distância essa mediada pela narradora sem voz ou atitude, o filme tornaria as "outras" mais aceitáveis. Sua função seria nos fazer assimilá-las como elas são e não como deveriam ser segundo ditadores de comportamento. Até as cenas eróticas, bonitas, discretas e românticas, serviriam a esse propósito. Estaríamos diante de mais um trabalho bem intencionado que, sem outro mérito, orgulha-se da tolerância e da pose progressista. Mesmo se fosse assim, que fique claro, isso não o protegeria. Nobreza de proposta nada tem ver com estética e valor artístico. Mas nem esse caminho edificante é perseguido

O roteiro encara o lesbianismo ocasional das duas protagonistas como subversão temporária das regras ou como forma de suprir carências de amor materno. Não há opção sexual, mas um desvio de rota. O sonho proibido das adolescentes vira pesadelo quando o caminho certo é retomado para o bem da coletividade. Para não chocar a família e evitar o estigma de sapatinha, uma das meninas abre mão de seu amor e começa a namorar um rapaz. A ex-namorada fica uma arara. Pira mesmo. Às lágrimas ou aos berros, ritualiza sua paixão, em público, com provas cênicas de amor. Arrebenta a porta do armário enquanto a outra finge nunca ter entrado lá, para não pagar o preço da construção de uma identidade espinhosa.

A postura da menor abandonada poderia ser transformada em um libelo em favor da liberdade de escolha. Não é. Ela não admite ceder às convenções apenas porque é do contra. Mergulha nas dores da rejeição apenas porque é deprimida. Cuida de um gavião ferido apenas porque é tantã. Desafia o namorado da amada apenas porque tem um lado macho. O mundo não se torna inabitável para ela por conta da mente curta das pessoas ao seu redor ou da falta de coragem de sua ex-parceira, mas porque ela tem problemas para aceitar as concessões necessárias em uma vida em grupo. A mocinha é tratada como uma louca clínica, como uma desequilibrada psicológica, como uma pedra no sapato da civilização, não como uma romântica alérgica à hipocrisia. Ela só age como age, segundo se constata, porque não teve mãe. Ah, tá!

Se a personagem não é asfixiada por esse psicologismo dramático primário, sua sobrevivência deve-se quase exclusivamente à bombástica Piper Perabo. Com seu misto de fúria e delicadeza, agressividade e lirismo, androginia e feminilidade, a atriz leva o filme nas costas. Filha de uma norueguesa com um português, tem um dos rostos mais expressivos, sem exagero, da geração surgida nos anos 90. Nos melhores momentos, lembra Angelina Jolie. Quer dizer: lembra os melhores momentos de Angelina Jolie. Seus gestos de carinho e suas manifestações violentas dão credibilidade e complexidade à um tipo pensado para ser assimilado como um sintoma do desajuste familiar. Piper Perabo – que nome esquisito – sabota essa sabotagem. É uma atriz autoral em sua intuição e espontaneidade. Consegue nos fazer ter prazer com imagens que rejeitamos quando a absorvemos com filtro crítico.

Na edição de 2001 do Sundance, Assunto de Meninas, adaptado do romance The Wives of Bath, de Susan Swan, foi recebido com confetes. Talvez porque seu tema esteja na moda, embora, nessa onda, Amigas de Colégio, de Lukas Moodison, seja mais libertário e melhor. Talvez porque sua diretora, Léa Pool, suíça radicada no Canadá, esteja construindo uma grife, ainda a ser analisada, como cronista de tipos carentes. Seu título de maior projeção internacional, Emporte Moi (1999), prêmio ecumênico em Berlim, também tratava de efeitos do esfacelamento familiar. Era a história de uma adolescente dos anos 60, afetada pela ausência dos pais, que se identificava com Nana, a prostituta interpretada por Anna Karina em Viver a Vida, de Jean-Luc Godard. Presume-se que, para Lea Pool, adolescência é o cão. Um cão que ladre, morde e tem raiva. Sem dar chances de fazer suas personagens olhar para a frente.

Cléber Eduardo