Lisbela
e o Prisioneiro,
de Guel Arraes
Brasil,
2003
A televisão apaixona o cinema.
Lisbela e o Prisioneiro
é a estréia de Guel Arraes num projeto "para cinema" (depois
de anos de grandes sucessos de público em seu núcleo na
TV Globo) e marca o retorno do autor ao texto que marcou seu primeiro
trabalho de tons "regionalistas" (Lisbela e o Prisioneiro já
havia sido adaptado para a TV pelo mesmo autor em meados da década
de 90). De que essa bagagem televisiva (da escolha do elenco aos roteiristas)
seria a principal referência de um projeto de "cinema popular",
não se levantavam dúvidas. A expectativa, no entanto, ficava
em torno das formas possíveis com que o diretor abordaria essa
sua transição, esse jogo de territórios cada vez
mais tensionados.
Para além da
mera reiteração de um mesmo universo popularesco e de fórmulas
de sucesso, o que surpreende em Lisbela e o Prisioneiro é
a maneira intensa com que essas questões da integração
estética-mercadológica televisão-cinema aparecem
como o cerne central de uma certa cadência narrativa e da própria
forma como o roteiro e o pôr-se-em-cena costuram seu pacto com o
espectador. O filme carrega consigo seu próprio dilema e se interessa
em jogar, brincar com ele.
Da metalinguística
um tanto "deja-vú" de Jorge Furtado à construção
da trilha sonora recheada de "canções-tema", Lisbela
e o Prisioneiro aparece demarcando com clareza estética e temática
um projeto audiovisual que (para o bem e para o mal, e para além
deles) se mostra muito mais ambicioso do que a mera repetição
autômata de uma fórmula de sucesso. Uma das mais sinceras
e ao mesmo tempo cínicas homenagens que o cinema já recebeu
por essas terras, Lisbela e o Prisioneiro se apresenta nessa dupla
face em que ao mesmo tempo o cinema recebe uma reverência à
altura de um bibelô saudosista, quanto é atropelado pelas
peripécias televisivas de uma narrativa fragmentada e fluida. Discorrendo
metáforas sobre a idealização das salas escuras e
o frenesi mambembe das feiras a seu redor, o filme faz do cinema uma espécie
de sonho popular perdido e fragilizado, atualizado agora nesse pacto frenético
com o previsível, nesse jogo de reiteração de gestos,
cultivado como beleza maior pela televisão.
Lisbela (uma Débora
Falabella iluminada) é a dama do cinema, jovem de cabelos engomados,
vestido delicado e longos planos iluminados pela tela; Leléu é
o frenesi, a falação desenfreada, os cortes rápidos,
a mistura de linguagens típicas (muitas máscaras) dos produtos
televisivos de Guel Arraes. Leléu e Lisbela se apaixonam e para
que possam viver juntos, Leléu tem que tirá-la daquele mundo
de luzes e sombras e levá-la para o mundo, pára longe da
cidadezinha, para a vida das feiras, das estradas. Enamorada por seu Leléu,
Lisbela sonha deixar seu passado para trás e se entregar a uma
vida itinerante, redescobrindo os clichês perdidos do amor romântico
nesse jogo mambembe de imitação e máscara, do ideal
romântico reencenado na autoconsciência televisiva. Desejosa,
orgulhosamente condescendente em ser agora a grande protagonista de um
contrafluxo de imagens para o cinema, a TV se enxerga e se narra como
a grande regente de uma fábrica de sonhos, da nova vida de um cinema
brasileiro condicionado a reeditar o eterno projeto populista do espelhamento
de um espírito do nacional.
O discurso de Lisbela
e o Prisioneiro acaba por localizar na estética televisiva
toda a possibilidade de uma representação do cotidiano,
tipificando personagens e reiterando fórmulas, olhando para o cinema
a partir do televisivo e redinamizando sua narrativa em prol desse projeto.
Nesse trilho, o filme carrega o melhor da televisão (no sentido
de uma intensidade estética) e o pior do cinema (no sentido desse
desapego pelo específico da tela grande), resultando numa obra
desconjuntada mas ciente de seus desafios.
* * *
Se desde o fim do
ciclo Embrafilme dos Trapalhões (70-80) o cinema brasileiro não
tinha um projeto marcante de "cinema popular" (demarco aqui que tais filmes
do quarteto talvez tenha sido os último a dialogar de igual para
igual com o universo televisivo), o atual Núcleo Guel Arraes é
protagonista de um novo processo de diálogo em que as bases se
fincam no conglomerado Globo de mídia. Enquanto a Rede Globo aplica
seu projeto de arrendamento de seu latifúndio midiático
(que alavancou o sucesso de Carandiru, O Homem que Copiava
e intensificou o sucesso de Cidade de Deus), investe também
na aproximação temática e estética com o cinema,
repetindo na tela-grande, a nata de seu projeto de integração
nacional-populista e a visão paternalista/reverente que vem cultivando
ao longo de sua história.
Nesse universo, Guel
Arraes aparece, hoje, como o artesão maior desse discurso e se
destaca pela habilidosa e apaixonada forma com que costura esse ideal
de representação de uma cultura brasileira aos clichês
da reiteração e rotinização típicos
da TV. Essa estrutura de ciranda, de retorno aos mesmos dispositivos,
da previsibilidade da rima e da estética, identificada nas formas
representativas dos folguedos e festas folclóricas, é retrabalhada
por Arraes como dinâmica para uma representação do
cotidiano e síntese de imaginário. E é nessa síntese,
nesse tom alegórico de representar os tipos brasileiros, que o
projeto de Arraes encontra o ápice de sua beleza e o fundo do poço
de um projeto de integração cultural caduco, mas onde o
cinema e a TV brasileiros vem encontrando em pecado mortal (não
apenas em Arraes, é importante frisar): a vontade de resumir o
"povo", a celebração (populista) de um "universo popular",
a tentação de ver seu discurso identificado como autêntico
representante ou denunciador de alguma "realidade" ou "essência
perdida" - apresentada na mágica da luz em movimento.
Felipe Bragança
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