Adeus,
Lar Doce Lar,
de Otar Iosseliani
Adieu
Plancher des Vaches, França, 1999
Pior do que o colapso dos regimes
comunistas do Leste Europeu e a crise moderna do capitalismo financeiro-globalizante,
só mesmo o fato de que os discursos oficiais, sejam eles políticos
ou artísticos, na última década, têm se pautado
entre dois pólos opostos mas complementares na sua chatice e, principalmente,
na sua incompreensão do fenômeno humano do mundo. De um lado,
o inevitabilismo conformado dos que defendem o capitalismo como é
hoje como única opção do mundo moderno, e de outro
os que clamam por uma volta imaginária a um tempo pré-capitalista,
onde o dinheiro seja abandonado como valor maior em troca de uma suposta
idéia de igualdade inexistente.
Dentro deste contexto, é
ainda mais raro o prazer de encontrar uma obra como este Adeus, Lar
Doce Lar, que consegue ser crítica do sistema vigente, sem
com isso ser anacrônico nem absolutamente ranheta e óbvio.
Talvez Otar Iosseliani faça o verdadeiro cinema político,
um cinema que busca a reflexão não a partir de argumentos
irreais, mas a partir da emoção e do humano, que confronta
os ideais capitalistas de fim de século não com a bondade
e a honestidade num falso jogo de maus e bons, mas com o espírito
libertário e humanista que não pode sobreviver aos tempos
modernos sem radicalismos.
Nesse ponto, é exemplar
a forma como ele estrutura sua narrativa: a primeira metade é uma
verdadeira aposta no lúdico, que parece quase um manifesto do poder
das imagens em movimento de criarem um universo todo especial que só
faz (e só precisa fazer) sentido na sala escura. Não há
neste primeiro momento uma indicação do conteúdo
contestador do filme. Há sim um profundo prazer de se acompanhar
o olhar de Iosseliani que retrata a cidade como magia, o mundo moderno
como capaz de ser palco de sonhos. Neste sentido, Iosseliani atrela completamente
sua linguagem ao seu conteúdo, criando movimentos de câmera
que sempre revelam um mundo novo, inesperado, ao desvendarem o espaço
do fora de quadro. Cada uma de suas panorâmicas torna-se um brinquedo
de esconder e mostrar. Da mesma forma, na montagem ele usa um expediente
característico de seu estilo, os cortes dentro do plano, que criam
pequenos "saltos" temporais que emprestam uma sutil mas desconstrutora
descontinuidade às pequenas ações. Esta primeira
metade pode até ser lida como um possível elogio à
miséria como força lúdica, mas seria equivocado perceber
nisso um valor do cinema do georgiano. Ele, na verdade, transforma a miséria
em parte indivisível da realidade, mas igualmente lúdica
e jogo, como qualquer outro componente.
Há, então, o momento
do choque, da separação do filme em duas metades, quando
a personagem do rapaz que nos guia por esta primeira parte de sonhos é
presa. Há uma elipse temporal, uma quebra da magia, e um ano depois
ele sai. O mundo que ele encontra é um mundo mudado, e mais do
que isso, um mundo que não pode mais ter espaço para os
sonhos. É o mundo de hoje. Esta metáfora artística
é talvez a mais política de todas: o mundo de hoje como
um mundo que impede o sonho. A metáfora sutil passa à referência
direta no café parisiense que vira um "café web internet",
ou na mulher desejada que surge casada e com filhos de um canalha. É
muito dura a transição que mostra o rapaz sendo cooptado
pela figura da mãe, uma autêntica capitalista.
Mas, quando o filme parece se
encaminhar para este desfecho que seria francamente redutor (o do "fim
das utopias"), é que o gênio de Iosseliani se revela
de fato. Os últimos dez minutos do filme são completamente
desconcertantes, ensaísticos mesmo, onde se abandona as personagens
e, inclusive, as vozes (são minutos "silenciosos" no
sentido de diálogos, há apenas os sons ambiente e a música),
e ele ainda aponta dois caminhos claramente abertos, como quem diz "a
História não termina aqui, ao contrário do que dizem
alguns, isso é apenas mais uma fase dela". Um deles é
a figura romântica do pai, ao longo do filme sempre um incapaz do
mundo prático, que vive em seu mundo de trens de brinquedo, bebida
e canções, e que parte num barco à vela com seu companheiro
de bebedeiras. O barco atinge o mar aberto embalado pelas canções
dos dois beberrões que se recusam a viver naquela realidade, e
partem em busca de outras. E, na figura da criança, da filha mais
nova, que com seu olhar demonstra que ainda há a semente do lúdico
e do humano no seio do próprio capitalismo, por menos que se possa
querer. O jogo da montagem entre estes dois extremos (os velhos que já
não podem viver com aquela realidade, mas podem viver outra; e
a criança que traz o olhar revolucionário do futuro no seio
da realidade) indica a tese de Iosseliani: o mundo pode estar num momento
muito estranho, mas não é o momento final. E no ser humano
estará necessariamente a próxima etapa, como sempre esteve.
Seja pelo discurso da impossibilidade de alternativas seja pela negação
da História que nos traz ao hoje, não se percebe a grandeza
deste caminho.
Eduardo Valente
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