Lara,
de Ana Maria Magalhães

Brasil, 2002


Desde seus primeiros trabalhos na direção, Ana Maria Magalhães teve no suporte documental uma de suas principais referências – atriz por excelência, construiu uma sucinta cinematografia de perfis biográfico de algumas das figuras centrais de sua geração. Com curtas e médias-metragens em torno de figuras femininas de destaque, como Leila Diniz, Ana Maria fez de sua cinematografia um espécie de grande álbum de fotografias em movimento, em que imagens suscitam lembranças, num retrato cultural brasileiro dos anos 60 e 70.

Em Lara, projeto remoído desde meados de 1995, Ana Maria mais uma vez tem como seu objeto uma das grandes divas do cinema brasileiro: Odete Lara. Baseado em memórias escritas pela própria Lara, o filme todo é uma espécie de retalhar de lembranças (da infância à conversão ao budismo), onde momentos chaves são pinçados para sintetizar o todo. Desde o início do filme, fica clara essa proposta de uma certa viagem turbulenta pela alma da atriz, quando seu carro se choca contra uma árvore e – num movimento entre-sono – a narrativa se inicia.

Durante uma hora e quarenta de projeção, imagens e momentos da vida da atriz se sucedem como slides: projetados na parede, criando inter-relações nem sempre diretas entre suas partes. Se a aposta numa biografia não objetivada, não-linear, poderia dar fruto à uma bela experiência cinematográfica; Lara, porém, decepciona. Apostando demais no conhecimento a priori em relação a seu objeto, as tramas dramáticas do filme não se sustentam sem que uma série de leituras periféricas tenham que ser realizadas pelo espectador. Em suma: só quem sabe quem foi (quem sabe mesmo!) Odete Lara pode navegar com certa liberdade. Não há autonomia narrativa que consiga fazer do filme um objeto de arte vivo nele mesmo. Lara não consegue ser mais do que uma espécie de apêndice audiovisual à vida pública da atriz, submetido à sua imagem real.

Muito da atração do filme está nos personagens ícones da ebulição cultural dos anos 60/70, que surgem como coadjuvantes em diversas cenas. Lara, trabalha na lógica de um certo cinema documentário em que a graça artística seria justamente (re)ver aquilo que seria a presentificação do "passado embrionário" de nossos mitos. O problema é que essa ferramenta de identificação narrativa depende muito da verossimilhança entre atores-interpretação e as figuras "reais" já esboçadas na memória comum do espectador. Em Lara o que vemos, acaba não passando de meras imitações, caricaturas.

Um filme caricatural, portanto? Não exatamente. Talvez como caricatura de uma época, o filme pudesse ser melhor resolvido. Mas sua clara opção autoral por um certo existencialismo, pelo descobrimento de uma liberdade interior através de uma lição de moral libertária, acabam minando essa possibilidade menos pretensiosa e lúdica.

Sendo assim, o filme segue com pequenas reconstituições de passagens da vida de Odete Lara, cenas que sempre acabam deixando um gostinho de mimetismo precário. Um gostinho de que cada imagem deixa muito a dever à personagem que se insinua nas entrelinhas de seqüências desencontradas, de uma dramaturgia pobremente baseada num modelo de melodrama e vitimização. Um modelo de biografia tão reiterado no retrato de mitos pop-culturais, que já não quer dizer mais nada. O trio drogas/fama/sexo é reproduzido no filme timtim-por-timtim, sem que nada de novo seja trazido à tona. Os dilemas da estrela solitária são tratados com a mesma embalagem com que as revistas de fofoca tratam as agruras dos "famosos" contemporâneos: superficial e drasticamente.

O filme passa...e apenas passa. Deixa a sensação de que muito pouco restou de suas imagens...de que talvez Odete Lara e toda uma geração de atrizes mereçam realmente uma reinvenção mítica através do cinema contemporâneo, mas que, efetivamente, esse movimento não foi alcançado por Lara. Mais: se fosse um dito "documentário", desses arquitetados sobre imagens de arquivo e fotos originais, talvez até valesse por aquele insuportável argumento de que o "objeto em si já é tão maravilhoso, de que o filme em si pouco importa"... Mas em se tratando de uma ficção poética, nem essa saída de emergência resta para que o filme sobreviva. Fica muito difícil. Muito difícil mesmo.

Felipe Bragança