Kiriku
e a Feiticeira,
de Michel Ocelot
Kirikou et la Sorcière,
França, 1998
O que é, na essência, um filme
infantil? Sim, principalmente um filme voltado para o público das
crianças. Mas isso responde pouco. O que é este público
infantil? É um público que, basicamente, relaciona-se com
as imagens e com o mundo primeiro pela emoção, só
depois com o raciocínio. Daí que se fala muito num público
infantilizado. Falar, pois, com o público infantil, é um
assunto muito sério, pois estamos falando também em formação
de caráter, de personalidade. Usar o lúdico como forma de
expressão, o que acaba colocando um filme num nível ainda
maior, pois subliminar, de efeito ideológico. Todo o público
brasileiro, desde o início dos anos 90, quando Os Trapalhões
param de filmar com regularidade e a Disney volta a produzir filmes de
longa metragem, está sendo formado, nos cinemas, por um código
ideológico importado. Um código americano (do qual, diga-se,
Xuxa é uma representante). Um código nem mais, nem menos
válido. Mas um código essencialmente estranho a nós.
E, que no entanto, é hoje O Código. Isso é perigoso
por razões complexas que nem convém dissecar aqui. Mas um
dos efeitos (obviamente não só advindo daí) é
a formação destas gerações que se ligam muito
mais a um ideal e a ser americano que brasileiro. Não por acaso,
quando o cinema migrou para ser quase exclusivo do jovem de classe média
e alta, distanciando-se da classe popular, e passou simultaneamente por
este processo descrito no cinema infantil, vimos no seio destas classes
mais abastadas, cada vez maior, o desejo de não ser brasileiro.
Hoje, Toy Story (mais uma vez, sem julgar o mérito do filme)
é mais bem sucedido que Os Trapalhões. Mas, Os Trapalhões,
nos cinemas dos bairros populares, ainda ganham.
Esta longa introdução faz-se
mais que necessária para se falar de Kiriku e a Feiticeira.
Pois não há dúvida que trata-se de um filme infantil.
Mas, acima de tudo, é um lembrete que o modelo americano não
precisa ser o único, não pode ser o único. E mais
ainda, que não é nem o modelo mais próximo de nós,
e que é uma aberração, tanto quanto um atestado do
poder do cinema, que seja hoje julgado assim pelo público.
A história pura e simples de Kiriku
pode até se assemelhar na essência (na essência não
nos assemelhamos todos?) com qualquer filme da Disney: um jovem vai enfrentar
um mal que aflige sua comunidade, para salvá-la. Ponto. Daí
para frente qualquer análise levemente sensível só
pode ver diferenças.
Começando pelos aspectos estéticos:
o filme se passa numa tribo africana. Mas não só num ambiente
africano ocidentalizado, como no Rei Leão. Ele se passa
mesmo numa tribo africana. Isso significa que tudo tem que mudar, desde
a relação figura e fundo, luz e sombra, contrastes, cores,
pois se fala de um imaginário, de uma luz diferente. Kiriku
incorpora tudo isso no seu traço, de uma fascinante bidimensionalidade,
e de uma coloração efusiva, como acontece sob o sol tropical.
Além disso, os personagens não são só negros,
eles parecem negros, o que é raro num modelo americano. As mulheres
da tribo andam de seios de fora, porque afinal, elas andam assim. Nós
aqui no Brasil ou na África não precisamos introjetar desde
já a mistura de puritanismo com fetichismo que tornou um seio obsceno.
Afinal, não há visão mais natural, quanto mais para
uma criança.
Em seguida, vem a música. Que no caso,
está presente, como tem sido hábito também nos filmes
americanos. Mas há uma diferença clara: isso não
é musical da Broadway onde os personagens desatam em coreografias
elaboradas e letras decoradas, nem programa de terceira de TV mal disfarçado
de filme, onde bandas e famosos aparecem vendendo CD. Não, a música
faz parte do filme como faz parte do dia a dia do povo. Eles vão
improvisando, batucando e reagindo à música para celebrar
vitórias, como as tribos fazem há séculos. A música
surge dos personagens.
Narrativamente, o filme localiza-se no campo
da lenda, do mito (se baseia neles o roteiro). Assim, os animais e objetos
não falam para serem bonitinhos, mas falam por razões claras.
Assim, o bebê fala de dentro da barriga da mãe e já
nasce com raciocínio e ação, pois representa uma
figura mítica (a do salvador, a do sangue novo). Assim, quase oralmente,
as situações se seguem como pequenas pílulas de conhecimento
sendo passadas, que possuem em si mesmas lições e códigos
morais.
Desnecessário seria dizer então
que é justamente no campo do código moral, da ideologia
propriamente dita (já que, latu sensu, ela está presente
na estética também), que o modelo de Kiriku se diferencia
de tudo que vemos. O jovem herói não parte para a luta com
a feiticeira por um ódio revanchista, e desejoso de sua morte.
Ele parte porque quer entender "Porque ela é malvada?"
Imaginem só, quão grandioso é isso. Ao invés
de matarmos os bandidos, os assaltantes, entender "porque eles são
malvados". Isso é uma revolução educacional
por si só (e não só para crianças...). Fica
mais fácil quando se pensa assim entender porque os filmes americanos
infantis, onde o mal é mau e ponto, onde ele deve morrer sempre
(caindo de precipícios de preferência), formam uma platéia
que repete, adulta, as lições aprendidas. Kiriku não
quer matar (e não mata, aliás, muito pelo contrário,
mas não vale revelar o final), quer compreender. Fazer sim seu
povo parar de sofrer, mas se possível fazer o mesmo com a feiticeira.
A relação com a vilã é só a mais clara
diferenciação, mas são inúmeras.
O herói procura o auxílio da
sabedoria do avô, onde ganha confiança, mas (numa das cenas
mais belas de todo o cinema) onde também busca colo, assustado
que está. O herói é intuição pura muitas
vezes, mas também pára para refletir, busca soluções
com o raciocínio lógico o tempo todo. O jovem Kiriku é
incentivado pelo avô a ser criança enquanto é criança,
e sentir-se feliz por isso, e ser adulto quando for e sentir-se feliz
por isso (num mundo de crianças "adultificadas" e adultos
"infantilizados" parece até um contrasenso). O jovem
Kiriku quer saber o porquê de tudo, ao que o avô lhe diz que
"se continuarmos assim, chegaremos a criação do mundo,
e mais ainda...". Ele se conforma, por hoje: "Tá bom,
então hoje eu vou perguntar só da Feiticeira".
O jovem Kiriku aprende o valor real de um amigo, um abraço. O valor
de pensar no grupo primeiro, em si só depois.
Por tudo isso, e muito mais, Kiriku e
a Feiticeira é sublime. Se não fosse um grande filme
seria ainda assim necessário num mundo que devia ser, no mínimo,
pluralista e globalizado. Para podermos ver que um modelo como o africano,
por exemplo, com mazelas e alegrias extremas, é muito mais nosso
do que o norte-americano. Que tem muita validade, mas que não é
nosso. Se não fosse um grande filme seria necessário, mas
além disso é um grande filme. É divertidíssimo,
engraçado, emocionante, mas acima de tudo trata a criança
com respeito. Mais que com respeito, com seriedade, que não é
sisudez. Não se omite com o discurso quase ingênuo, se não
fosse tão inteligentemente articulado para parecer assim, de ser
"apenas diversão, nada mais". Sabe que é educação.
E sabe que isso só significa coisa chata para os muito embotados.
E é uma pena que esteja lançado vagamente, esquecido em
meio aos Pokemóns e Dinossauros. Se pelo menos aquela outra Feiticeira,
aquela de bunda e seios falsos, parasse de ser como uma americana, assumisse
alguma função social outra que o fetichismo e a venda de
produtos, e servisse como propaganda do filme que leva seu nome, quem
sabe metade das crianças que deviam ver este filme não estariam
vendo. Pois não se diz que males vêm para bem? E, depois
não cabe só dizer que a Feiticeira é malvada. Cabe
entender o porquê. Até que eles levem a criação
do mundo, e muito além...
Eduardo Valente
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