Kamchatka,
de Marcelo Piñeyro


Kamchatka, Argentina, 2002

A ditadura militar na Argentina entre 1976 e 1983 pode ter sido curta, se comparada com outras ditaduras semelhantes em países vizinhos, mas foi dura, malvada, responsável por dezenas de milhares de desaparecidos. Em meio a perseguições brutais e prisões arbitrárias, comuns em qualquer regime do tipo, ativistas, profissionais liberais, classe média politicamente engajada viram a realidade ser transformada quase que de uma hora para outra. Para essas pessoas a vida foi tomada pelo medo e com ele veio a necessidade de lutar ou fugir. Tema ideal para um drama histórico ou um filme político de esquerda, facilmente encontrado na filmografia de um Ken Loach, que nas mãos de Piñeyro vira um pano de fundo que situa uma época permitindo que ele trabalhe o mesmo assunto de um outro ângulo, sem nunca negligenciar a realidade assustadora que seus personagens agüentam.

A ditadura em Kamchatka não é sentida como um acontecimento histórico com conseqüências políticas e sociais. No filme de Piñeyro ela é antes a causadora dos distúrbios pessoais. E ele, focando nos detalhes de relacionamento em uma família e nas alterações do cotidiano, condena a brutalidade da situação mostrando as interferências que ela causa nas vidas de todos. As pessoas são obrigadas a mudar de cidade, de hábitos, escola, trabalho, chegando ao extremo de criar outra identidade e viver uma vida falsa, escondida. Quase não há militares nas ruas. Na verdade, o recolhimento do esconderijo evoca muito mais uma tranqüilidade. Mas é essa suposta calma que, por ser imposta, configura-se como uma quebra na rotina ao transformá-la em um constante estado de alerta, apesar das aparências.

Piñeyro mostra a busca pessoal para manter a normalidade e estabilidade familiar no meio da tempestade. Seus personagens estão constantemente procurando recriar um universo a que estão acostumados e se forçam por aceitar todas as adversidades como provas de união. Não é possível simplesmente deixar de ser humano no meio do caos. O núcleo familiar garante isso. E o contraste com a realidade da ditadura nos dá momentos de humor e melancolia já que são a afirmação de uma força maior que nenhum regime, por pior que seja, pode abalar. O filme está repleto de passagens de total intimidade caseira onde se levantam questões que só dizem respeito aos membros de uma família e seus hábitos particulares.

No fundo Kamchatka é uma história trágica. São lembranças de uma infância abalada pela realidade política que guarda uma mensagem de força e resistência. Quem julgar o filme por essa frase vai cometer um engano. Piñeyro constrói as situações de intimidade com tanta naturalidade que elas se convertem no problema principal e fazem Kamchatka deixar de ser um filme político para ir muito além e virar um filme humano.

João Mors Cabral