Judy Berlin,
de Eric Mendehlson


Judy Berlin, EUA, 1998

Havia algo que não cheirava bem em Felicidade de Todd Solondz, nem muito menos no mais fraco Beleza Americana de Sam Mendes. E não era só o fato de que a crítica à estrutura da família americana que eles faziam parecia brincadeira de criança perto da obra de Billy Wilder, perto de um Perdidos na Noite, perto de um A Primeira Noite de um Homem ou de um Quem Tem Medo de Virginia Woolf?. Acima de tudo, incomodava a reação da platéia, como se o maná corresse da tela para ela. Isso é facilmente explicável na aridez de idéias e seriedade que acometeu o cinema americano na década de 80 e se agravou na de 90, fazendo que pastiches como os citados (um mordaz, não há dúvida, o outro pouco sutil) fossem considerados obras-primas. Pois bem, o filme de estréia de Mendehlson vem redimir o jovem cinema americano, mostrando que ele é capaz de refletir um pouco além de uma quase adolescente negação caricatural do pai.

De fato, há uma personagem que, quase no fim do filme, quando acusada por uma ex-aluna sua de, por tê-la dito algo na adolescência, ser a culpada de seu fracasso na vida, faz questão de replicar: "Ao invés de ficar me culpando, faça algo da sua vida!". E a relação de Judy Berlin com a tradicional família americana representada nas pequenas cidades e suburbs é justamente essa, em oposição a seus predecessores mais famosos: vamos propor algo, ao invés de só reclamar e criticar os outros.

Mendehlson usa do mesmo estilo de trilha sonora que lembra um seriado de TV, uma rapsódia, um conto alegórico. Mas filma em um preto e branco quase naturalista, como o de A Última Sessão de Cinema, filme com o qual se relaciona demais. Seus personagens poderiam ser os mesmos de Felicidade e Beleza, só que eles têm mais camadas. Ao invés do conflito puro e simples, eles têm sonhos, emoções. Ao enfocar a típica "Smalltown, USA", Mendehlson não se coloca de fora, mas sim como parte dela. Não por acaso as inúmeras referências do personagem de David Gold ao cinema, com tintas claramente autobiográficas. E é esta inserção do autor que faz toda a diferença. Os conflitos de geração estão lá, as dificuldades afetivas na família também. No entanto, há um profundo carinho no fundo. Enfrenta-se as questões, mas sempre com amor.

O principal sentimento do filme é a presença do passado, quase opressor. A tradição é um aspecto muito forte. Assim, David e Judy revivem sua relação de mais de dez anos antes, na escola. Os pais de David enfrentam uma crise conjugal em que pesa o excesso de tempo. Uma velha professora não consegue mais distinguir o passado do presente. A mãe de Judy se ressente ainda dos sonho não realizados pela filha. Os personagens todos precisam entrar em paz com seu passado para poder voltar a andar em frente.

O formato usado por Mendehlson é o quase batido da montagem paralela entre a odisséia de cada um deles ao longo de um dia. Neste dia, um evento muda tudo: um eclipse do Sol. E sua força é justamente a de parar o tempo e fazer com que todos percam a noção de sua passagem. Numa cena estupenda (talvez a principal do filme), David e Judy passeiam pelo centro histórico da cidade, cercados por figurantes figurinados de época, pois são atores do "parque temático" do local, como numa autêntica viagem no tempo.

Toda a comunicação entre os personagens está cortada quando o filme começa (e é rigorosa a construção disso desde o primeiro diálogo do filme, abafado por um trem), o que um pergunta nunca é o que o outro responde. Lentamente eles vão entrando em sintonia consigo mesmos e depois com os outros, até que no final eles conseguem ouvir e sentir. Os atores constróem seus personagens no limiar do banal do dia a dia, percebendo ainda a dimensão maior de estranhamento que as suas relações criam. No final de duas horas de um rigor louvável do diretor em suas intenções, na cena final, uma personagem descobre que esquecer o que se sabe é apenas estar apta a começar a aprender tudo de novo.

E a inteligência e sutileza do diretor nos fazem crer em suas "sombras animadas", pelo que elas efetivamente têm de "anima", de alma. Ao contrário dos filmes de clichês fáceis, aqui nós nos relacionamos com as dores por perceber a grandiosidade destas pequenas vidas. E fica o diálogo onde o alter-ego do diretor, David Gold, diz que gostaria de fazer um filme sobre a vida na pequena cidade. Um documentário, onde ele apenas filmasse o sublime de cada pequena ação.

Eduardo Valente