Paralelas
e Transversais
O Mistério da Libélula, de Tom Shadyac
Um Ato de Coragem, de Nick Cassavetes
Dragonfly, EUA, 2002
John Q., EUA, 2002
Frutos autênticos
do cinemão americano de cunho comercial, estes dois trabalhos têm
em comum uma ocasional coincidência. Mas, na verdade, muito mais
importante são as conclusões que permitem perceber sobre
o processo de produção de imagens deste tal cinema dominante,
e em especial sua relação com o imaginário do público.
A coincidência citada é que ambos se passam, em grande parte,
num hospital da cidade de Chicago. No entanto, não poderiam utilizá-lo
por motivos mais distintos. Enquanto o filme de Cassavetes propõe
uma reavaliação do sistema de saúde americano, o
de Shadyac levanta a velha questão: existe vida após a morte?
Este é, de
saída, o primeiro ponto de interesse: ver como o cinemão
americano consegue usar de pontos de partida absolutamente sócio-políticos
(primeiro caso) ou existencial-filosóficos (o segundo), e torná-los
pano de fundo para o mais puro entretenimento. Com o mesmíssimo
tema certamente brasileiros, franceses ou ingleses optariam por tratamentos
completamente diferentes. No entanto, este é um dos mais bem guardados
segredos do cinema americano: usar pontos de partida sérios, para
então simplificá-los e torná-los palatáveis
e "divertidos". O divórcio entre seriedade e diversão que
existe nos cinemas nacionais de tantos países sempre ajudou a confirmar
a hegemonia americana, que toma para si o dever de falar das coisas da
vida, da forma que o público goste. Não ter percebido isso
e acabar criando uma fissão entre diversão e pensamento
foi um dos mais graves erros dos cinemas nacionais, e seu distanciamento
e entrega de seu público ao cinema americano (claro que mencionamos
aqui apenas argumentos narrativo-estétivos, há os econômicos,
mas estes são sempre os repetidos, justamente o motivo pelo qual
os narrativo-estéticos passam desapercebidos).
Coube ao cinema americano,
então (e, por exemplo, no Brasil, à telenovela - é
só ver a atual abordagem das drogas na novela O Clone) exercer
este papel de "pensar o mundo" para o espectador comum. Concluir por ele
o que ele devia estar pensando sobre o hoje. E o que há de mais
perigoso nisso é que o faz a partir de pressupostos que misturam
as necessidades romanescas de suas narrativas com a complexidade de questões
pelas quais precisariam passar. Como resultado, usam invariavelmente os
"temas do momento" como chamariz modernizante e atual para o reforço
dos mesmos valores conservadores de sempre.
Se pegamos estes dois
exemplos, que lidam com duas das principais preocupações
do "homem contemporâneo" (as injustiças do sistema contra
o indivíduo e a existência de uma outra vida que justifique
a dureza desta), percebemos que ao final eles são tão somente
reafirmações do mesmo corolário: a família
nuclear tradicional como local de realização completa do
ser humano, a superposição do indivíduo sobre as
questões coletivas, e acima de tudo, a crença em uma instância
superior que garantirá que "aos bons" não faltará
a felicidade, independente do quanto ele possa sofrer. O somatório
destes pressupostos básicos do mais latente conservadorismo americano
ajuda a entender como o cinema que se disfarça de diversão
está formando cabeças a décadas. E a oposição
a ele sempre foi a proposição de um cinema que o enfrentasse,
principalmente, na parte estético-narrativa. Falta conseguir propor
um cinema que, da mesma forma que atinge o público no seu interesse
romanesco, possua a capacidade de refletir a complexidade de questões
da atualidade, formando cabeças menos maniqueístas e preconceituosas.
E é interessante
ver, inclusive, como o cinemão se atualiza no seu discurso, incorporando
o "politicamente correto" de forma a parecer ampliar sua tolerância.
Assim que no filme de Nick Cassavetes, a família heróica
é negra, e no filme de Shadyac temos uma personagem feminina simpática
homossexual. No entanto, pouco importa a cor da pele ou a orientação
sexual, o discurso continua sendo o mesmo, apenas a forma é que
se aperfeiçoa e atualiza. Tanto Denzel Washington quanto Kevin
Costner (ele, afinal, o exemplo modelar deste herói conservador)
são duplos do mesmo personagem: o homem americano comum que sonha
apenas em poder viver sua vida feliz com a sua família sem que
o Estado (ou a Morte) venha atrapalhá-lo. São personagens
bons 100% do tempo, e que quando dão passos discutíveis,
nós os entendemos e compreendemos (outro item básico do
ideário conservador: o de que a lei deve ser defendida até
o momento em que atrapalhe o direito de um cidadão "honesto" ser
"feliz", a partir do que ele pode tomar as rédeas para si mesmo).
É claro que,
ao invés de toda essa falação, eu poderia apenas
tomar para mim o papel clássico do nosso "crítico formalista",
e julgar a obra de arte por si. Considerar os dois filmes "esteticamente
desinteressantes" (embora haja jogos de fotografia bem intessantes no
filme de Shadyac-Costner e a estrutura narrativa escolhida para o início
do filme de Cassavetes-Washington seja no mínimo peculiar), narrativamente
óbvios, pobres no uso de clichês e improbabilidades (porque
afinal o fantasma da mulher de Costner não diz logo o que quer
ao invés de ficar fazendo charadas?? Porque a personagem de Anne
Heche chora ao ver o drama de Washington na TV se ao vivo ela nunca se
interessou?). Podia rir de tantas falas absolutamente falsas e repetitivas.
Podia considerar especialmente os seus finais toscos e piegas, catárticos
ao ponto do ridículo. Eu podia dizer isso tudo sim, porque seria
verdade. Mas ao fechar os olhos ao que realmente importa nos filmes eu
estaria caindo direto no seu jogo, como tantos coleguinhas que entendem
muito "de arte" cismam em fazer. E ao tolamente julgarem desimportante
de discussão este "cinemão", entregam a ele os milhões
de pessoas que o assistem de bandeja. E, de forma o mais estéril
possível, enfiam suas cabeças bem formadas no buraco da
terra, tal e qual avestruzes de penugem bela, em busca da grande arte
que os satisfaça. Enquanto isso, o papel de formação
de imaginário continua nas mãos daquilo que é , afinal,
apenas a maior diversão. Bravo.
Eduardo Valente
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