Insônia,
de Christopher Nolan
Insomnia,
EUA, 2002
Há pelo menos duas formas de ver este novo filme de Nolan. A primeira,
e mais comum, tem sido enxergá-lo como um thriller competente e
bastante sóbrio, um estudo de personagem, com algumas seqüências
excepcionais (como a perseguição sobre –e sob- troncos de
madeira; ou a do assassinato do policial). É uma forma bastante
justa, mas seria o mesmo que considerar o Planeta dos Macacos de
Tim Burton apenas um "filme de ficção científica".
E a pista principal que permite ver que sob a superfície de gênero
existe algo mais (em ambos os exemplos) é algo tão intangível
e inexplicável como impossível de não se notar: alguns
chamariam de "mood", mas na verdade é muito mais o domínio
do fazer cinematográfico (misturando-se aí filmagens e montagem)
que permite dar a um filme uma sensação, um ritmo interno
alterado, que mexa com o espectador de formas muito mais subliminares
que a história que se está contando.
Se Planeta dos
Macacos era de fato um ensaio sobre a violência e a intolerância
reinantes no mundo, este Insônia é, por sua vez, um
longo dilema de consciência de um só personagem. O detetive
de Al Pacino não está investigando um crime no distante
Alaska e sim descendo às profundezas da sua própria alma
tentando lembrar o que é que o movia a ser um policial, tentando
ver, após anos de profissão, o que sobrou deste impulso
inicial. E neste ponto Nolan consegue mais uma vez uma interessante (embora
muito mais sutil e menos auto-centrada) mistura de formato narrativo e
estado mental do seu personagem principal. Sim, porque Insônia
inteiro parece funcionar sob a lógica do pesadelo. Ou, de forma
mais acurada, como aquelas noites em que rolamos na cama, entre acordados
e dormindo, mas sem conseguir de fato mergulhar no sono pela preocupação
com algum assunto.
Me parece muito mais
rico enxergar o filme por esse viés, que aliás está
presente em toda a encenação. Desta forma o Alaska surge
não como local físico, mas sim como espaço fora da
realidade mesmo (com suas "noites brancas"), onde se desenrola
o delírio de consciência do personagem de Pacino. A cena
de entrada do personagem neste ambiente (dentro de um teco-teco) é
como se fosse a descida a um nível de consciência diferente,
onde o filme se desenrolará. Angustiado, incômodo, desagradado,
são adjetivos tanto para personagem como para o filme.
E, nesta longa "noite
em claro" surgirão dois personagens opostos (quase como o
anjinho e o demônio folclóricos), interpretados por Hilary
Swank e Robin Williams, que nada mais são do que lembretes a Pacino
do que era sua encarnação ao entrar na polícia e
seu pior pesadelo daquilo no que pode ter se transformado. Estes dois
personagens são claramente a pista que deixa mais claro que o filme
não deve ser lido apenas na chave do naturalismo. Tanto um como
outro parecem sempre um tom acima do que se poderia esperar, surgindo
sempre em diálogos "formativos" com o personagem de Pacino,
de resto, o único verdadeiro ser humano em cena. Do dilema ético
que move este policial é que parecem sair todos os detalhes que
compõem o filme de Nolan, um dilema que afinal é o de todo
ser humano: aquilo que se sonhou ser um dia em oposição
ao que o mundo nos torna.
Visto assim, Insônia
possui enorme rigor e domínio narrativo, se mostrando um passo
claro de Nolan rumo a uma maturidade de intenções. Se Amnésia
era o filme de um menino que brincava de cinema (e, insisto, um brinquedo
divertidíssimo), este já é um trabalho de quem une
preocupações humanas mais profundas ao seu domínio
do jogo. Um belo trabalho, que tanto na sua assistência quanto na
reflexão posterior, pede bem mais atenção do que
lhe tem sido dispensada.
Eduardo Valente
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