Inquietude,
de Manoel de Oliveira
Inquietude,
Portugal, 1998
Leonor
Silveira em Inquietude de Manoel de Oliveira
Num dado momento de
Inquietude, a prostituta Suzy leva as flores ao seu rosto. "C'est
un détail" é só um detalhe diz
ela, colocando as flores que recebeu do amante na mesa. Mais tarde, quando
ela pegará de uma deslumbrante piteira, Oliveira fará questão
de enquadrá-la da mesma forma que antes, sob a mesma gigantesca
pintura que serve de parede e fundo, apenas para mostrar ao espectador
que as flores apenas um detalhe não estão
mais lá. O tema de Inquietude, percebemos desde seu começo,
é a possibilidade de felicidade com a passagem do tempo. A felicidade,
segundo Suzy, é também só um detalhe. E nessa desaparição
das flores, nesse breve instante em que as flores transformam o ambiente
em pura beleza antes de repousarem para sempre na eternidade, é
que Manoel de Oliveira estabelece toda a sua lógica de cineasta
(e nela, a lógica do próprio cinema, que é a cada
1/24 de segundo uma arte da desaparição).
A "pobre Suzy",
como vive dizendo o amante-apaixonado interpretado por Diogo Dória,
também desaparecerá tal como as flores e o cinema, levada
por uma operação mal-sucedida. Ela, entretanto poderá
divagar com seu amante a respeito da felicidade, no exato meio do filme,
e igualmente no centro narrativo da história. Ela pode viver a
vida de forma agradável, um momento após o outro, ter o
conforto, as roupas, os belos momentos. Atabalhoadamente, o homem lhe
pergunta se ela alguma vez encontrou felicidade. Nesse momento, Suzy deixa
o plano e o espectador passa a simplesmente ver o fundo da tela transformado
por Manoel de Oliveira em única atração dos olhos.
Quando a questão é a felicidade, tudo que se passa no filme
acontece fora dos nossos olhos. Felicidade, diz Suzy, nunca a tive. "C'est
un détail."
É nesses detalhes,
entretanto, que a sutil arte de Manoel de Oliveira se faz. Sua preferência
pela lentidão, seu gosto pela voz humana, pelos objetos do passado,
pelas decorações de outras épocas, tudo isso nos
permite ver uma arte do detalhe que não é puro abuso de
virtuosismo, mas um profundo amor pelo gesto, por aquilo que constitui
a força da arte cinematográfica: um gesto é aquilo
que por definição tem uma breve ocorrência cheia de
brilho para depois fenecer. Em Inquietude, vários gestos
nos ficam na mente, muito mais do que as histórias que as sustentam
(embora as três, belas peças de literatura portuguesa, sejam
formidáveis: Os imortais de Prisma Monteiro, Suzy
de Antonio Patrício e A Mãe de um rio de Augustina
Bessa-Luís, mesma autora do Vale Abraão, livro de
que Oliveira tirou um de seus melhores filmes): Leonor Silveira puxando
da piteira tendo por trás um belo painel, Leonor Baldaque sorrindo
ao brincar com seus dedos de ouro passando-os por cima da chama de uma
vela (uma mesma vela, mais tarde, a denunciará) ou até mesmo
o próprio Oliveira, que num determinado momento da segunda narrativa
do filme toma a liberdade de, nonagenário, dançar o tango
e provar a seu próprio filme que a felicidade implica sempre a
passagem, o movimento, e não a recusa à passagem do tempo.
A primeira história
diz respeito diretamente à morte: um pai convoca seu filho para
convencê-lo a se matar antes que o tempo dê cabo dele aos
poucos e, morto ainda com brilho nos olhos, transformaria-se num morto
imortal. Tudo no pequeno filme visto pelos intérpretes do
segundo episódio como uma peça de teatro é
minuciosamente elaborado. Os dois são "homens de ciência",
ou seja, profissionais dedicados a congelar o tempo, a extrair constantes
universais, desconfiados que são do acaso. O máximo de vitalidade
da casa do velho senhor reside numa fotografia de sua melhor ex-aluna
aliás Isabel Ruth , que permanece estática
sobre uma mesa. A realidade empedrada do pai implora ao filho: "Mata-te!"
O pai reclama que todas as suas teorias já são dadas como
ultrapassadas, que ele morrerá como um qualquer porque seu tempo
já passou; as teorias do filho, por sua vez, ainda permanecem em
vigência, ele ainda é um homem conceituado: morrer nesse
momento o tornaria para sempre célebre, imortal. Para convencê-lo
do contrário, o filho organiza um piquenique, e chama a doce Isabel
Ruth que, num dos mais belos momentos do filme, dança sob a relva
antes que a câmara possa reenquadrar os dois homens. As mulheres
têm um papel primordial em Inquietude: elas devem mostrar
aos homens que a doçura da vida repousa no gesto. Elas desejam
a ação, enquanto os homens preferem o estado; elas querem
a vida, enquanto os homens lutam pela eternidade.
Se o primeiro episódio
fala do empedramento da vida, a morte, o segundo fala do empedramento
do amor. Diogo Dória, apaixonado por Suzy, não consegue
deixar de dizer a seu amigo e confidente: "Pobre Suzy". Ele
carrega em si a paixão empedrada, o desejo de amor como estado,
enquanto Suzy, tornada prostituta, é a própria figura do
movimento amoroso: jamais com o mesmo homem, jamais previsível,
sempre com o olhar profundo e misterioso, uma mulher que jamais poderá
ser desvendada. Ela também reside no quarto do amante como uma
fotografia (aliás muito semelhante à fotografia do pisódio
anterior), como a única imagem "igual a si mesma" de
Suzy que o homem pode ter e nunca é demais lembrar que a
fotografia é o tempo parado , e, no fim do segundo episódio,
escreve uma última carta à já morta ex-amante. Ele
só consegue pensar nela como o amor idealizado, inalcançável
como a eternidade para o velho d'Os imortais , jamais
como fluxo, que é só como ele a terá. Por isso as
conversas de homens se desenvolvem sempre em climas soturnos, de meia-luz
ou quase breu, enquanto a simples presença de uma mulher no ambiente
enche a tela de luz como no maravilhoso passeio de barco que Suzy e seu
amante fazem, e que Oliveira filma de longe, preferindo deixar as sombras
das árvores se instalarem sob a pele da cortesã.
A última parte
do filme, por fim, é a única que é despida de breu.
Dessa vez, os protagonistas não são masculinos e nem a mulher
é idealizada. Ao contrário, as cartas passam a ser jogadas
por elas. Fisalina, cândida adolescente, sente-se descontente com
o mundo que vive, recusa o empedramento de tudo à sua volta: namora
um jovem de outra aldeia, nega a fruta que lhe dão, vive infeliz
dia após dia. Sua única saída, como encarregada da
feminilidade, é romper todas as barreiras: ela procura a mãe
de um rio para transformar-se também em uma. Ora, uma mãe
do rio não é tarefa fácil: exige isolamento, uma
solidão profunda de 200 anos. Mas Fisalina sustenta seu desejo:
contra namorado, família e aldeia renegando todos os estados
e apenas dando atenção aos fluxos , a adolescente
retira-se do mundo social e vai à mãe do rio, que em grego
antigo lhe explica uma espécie de panteísmo derivado da
Teogonia de Hesíodo. Seus dedos de ouro tocam a natureza,
Fisalina passa a ser uma agente da natureza. Quando ela deixa a caverna,
ao pedido da mãe do rio, ela olha para o chão e dele brota
um rio, o rio de Fisalina. Contra a população muito solitária
da aldeia, Fisalina prefere a solidão muito populada da natureza.
E é como ela que Oliveira, muito solitário como todo artista,
se vê populado de uma imensidão de detalhes, todos prontos
a desabrochar no mundo de seus filmes e fazerem a ele companhia. No fim,
quem ganha é a inquietude.
Ruy Gardnier
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