Paralelas e Transversais
Identidade, de James Mangold
Uma Saída de Mestre, de F. Gary Gray

Identity, EUA, 2003
The Italian Job, EUA, 2003

Bons exercícios de gênero são bem mais difíceis de se fazer do que a critica preguiçosa geralmente assume dentro da suas oposições simplistas entre cinema sério e de entretenimento, e sua obsessão com descrições de trama. Quando os gêneros em questão trabalham sobre terreno tão delimitado como o do filme de roubo (Uma Saída de Mestre) ou da variação sobre O Caso dos Dez Negrinhos (Identidade), as coisas tendem a ser ainda mais difíceis.

Há um dialogo em Uma Saída de Mestre que parece bem ilustrativo de como um cineasta precisa operar num meio desses. Mark Whalberg encontra com o ex-parceiro que o traiu no início do filme (Edward Norton), e este ainda surpreso ao descobri-lo vivo, cita as possíveis formas que ele poderia ter encontrado para se vingar e como todas elas já estão devidamente cobertas. No que o personagem de Whalberg emenda: "Sabe, é por isso que você sempre foi o segundo em comando, não tem nenhuma imaginação". Imaginação não deixa de ser a palavra chave no jogo que se estabelece entre um filme desses e o espectador, já que este está ali disposto a ver situações de alguma forma reconhecíveis, mas não reconhecíveis demais.

Em Identidade, James Mangold toma uma opção que certamente há de agradar aqueles que são obcecados por tramas. Tenta complicar bastante as coisas, revirar o formato do avesso, injetar-lhe inteligência. Como? Fazendo um filme todo baseado no seu roteiro "esperto" e cheio de joguinhos. O filme segue durante uma primeira metade relativamente normal (a exceção de alguns flash-fowards que dão informações sobre o desfecho da trama), apresenta seus personagens, e depois os coloca para morrer um a um de forma misteriosa e ritualística. Estas cenas são dirigidas com competência, mas não muito criatividade por Mangold e muito bem defendidas pelo elenco. Temos a sensação de estarmos diante de um filme que passa longe do excepcional, mas que é bem digno.

Então começam a ser lançadas referencias de que as coisas não são o que parecem ser e de que pode haver um elemento de fantástico envolvido. Daí em diante o roteiro de Michael Cooney lança mão de uma série de surpresas mecânicas, e psicologizações baratas. Enquanto Mangold tenta defender o filme como algo mais sério sobre a mente humana (o criminoso, descobrimos, tem múltiplas personalidades). Neste momento o filme se torna tão esquizofrênico quanto seu novo personagem central, tentando se equilibrar entre uma tentativa de surpreender a todo momento o espectador e de ser um trabalho mais sério sobre aquele personagem divido, algo que nem Mangold, nem Cooney parecem ter talento algum para segurar. Na altura da última reviravolta (quando o filme revela o óbvio e apela para pior das explicações psicológicas possíveis), já não há mistério ou envolvimento algum, só resta a poeira na cara do espectador que o filme joga para tentar dar um ar de diferente, o que no fundo ele não é.

Há um plano em particular que parece apontar para todos os problemas do filme. Ainda no início, um close de uma cópia de O Ser e o Nada de Sartre que o protagonista mantém no carro. Nada contra o uso do livro como forma de apontar as implicações mais sérias que os cineastas pretendem desenvolver. Mas a proximidade do plano e sua relativamente longa duração (não há nada nele para ser visto além do nome do livro) se dão de forma a sugerir que Mangold acredita que seu espectador é incapaz de compreender o que ele põe na tela. Por toda a sua alegada inteligência, Identidade acredita que seu espectador é essencialmente burro. Há algo de errado ai.

Uma Saída de Mestre se inicia com uma série de planos que sugerem a preparação para um golpe. Parecem valer tanto para os personagens quanto para o diretor F. Gary Gray. É um filme sobre profissionais que se orgulham de serem muito bons no que fazem, e parece ter sido feito por uma equipe idem. A construção do filme é extremamente simples. Os ladrões fazem um roubo perfeito em Veneza, são traídos por um dos seus e um ano depois o localizam e preparam um grande roubo para recuperar o seu ouro. Filmes de roubo têm uma formula muito rígida, onde a graça é ver o assalto complicadíssimo ser preparado e depois ver os ladrões se virarem quando as coisas não saem bem como o esperado. As únicas coisas que Gray adiciona são um motivo extra (mais do que o ouro, eles querem vingar o líder morto no golpe anterior) e reduzir as habituais complicações.

Toda a graça do filme está em como tornar as situações já esperadas – o primeiro golpe frustrado, o planejamento, o segundo golpe – em algo interessante. Ajuda muito que Gray saiba como filmar corpos em movimento e tirar o melhor proveito das suas locações. Assistir Uma Saída de Mestre, após um filme escrito como Identidade, é um prazer. Justamente pela sensação de ser obra de gente que sabe muito bem o que está fazendo. A montagem é rápida (como não podia deixar de ser num filme desses hoje), mas precisa. Ela não é excitante porque é rápida, mas porque a alternância de planos é sempre funcional. A perseguição no fim é simples, mas imaginativa e muito bem resolvida. Mais importante, quando as ocasionais surpresas surgem aqui, o filme faz por merecê-las. Em Identidade, os realizadores puxam o tapete do espectador, aqui, eles puxam o tapete com o espectador. Faz muita diferença.

Filipe Furtado