A
Humanidade,
de Bruno Dumont
L'Humanité, França,
1999
(artigo publicado à época do
Festival do Rio 2000, pedindo novo texto que publicaremos em breve)
A Humanidade
recebe o público muito friamente. Vemos, em cinemascope, uma silhueta
cruzar a tela, à distância, da esquerda para a direita. Esse
personagem, mesmo quando a imagem se aproxima, continua a andar, de costas
para o espectador, até que cai, com a cara na terra molhada. Aos
poucos, o espectador vai percebendo do que se trata: é um policial,
de nome Pharaon, com o olhar sempre perdido, e de aparência tão
vaga que parece um pobre diabo que acabou de ser lobotomizado. Ele é
a figura de inocência do filme. Do outro lado, a origem do mal:
ele está tão atordoado porque acabou de descobrir à
beira da estrada o corpo morto e violado sexualmente de uma menina de
11 anos de idade. O sexo da menina nos aparece à tela: uma imensa
racha vertical vermelha que preenche toda a tela. Mais tarde, o mesmo
procedimento aparecerá à tela, mas com outra significação.
Mas não é
a história propriamente o que mais arrebata no filme de Bruno Dumont,
mas antes de tudo a forma como tudo nos é mostrado: economicamente,
sem pressa, operando antes por subtração do que por soma,
reduzindo todos os elementos que aparecem diante da tela à sua
pura importância imediata (ao contrário dos filmes de suspense
mesmo que de certa forma se trate de um , onde o mais importante
é a retenção de determinados objetos, determinados
dados como prova do assassinato, do crime, etc.). O cinema de Dumont é
um cinema dos fluxos, em que a câmara permanece parada, descritiva
o tempo todo para registrar todas as flutuações de intensidades
do mundo que está diante dela.
Pharaon tem um passado
traumático, e a esse passado é atribuído seu estranho
comportamento: ele tem, como um carrapato, pouquíssimos afetos:
ama seu jardim, onde desenvolve com as flores uma relação
pelo cheiro; gosta de Domino, sua grande amiga ao lado, que tem um namorado
metido à besta; e gosta de andar de bicicleta até o cume
do vilarejo para poder descer tudo novamente sem pedalar, às expensas
do vento. Um espírito desses, o ícone da ingenuidade (e
talvez essa ingenuidade seja atribbuída à humanidade do
título do filme), não sabe o que fazer diante do mal. Diante
do mal ele cheira, ele tenta saber o que diabos faz alguém transgredir
a lei (que para ele não é lei, mas Lei, porque é
uma lei não da política, mas do Mundo, de Deus). Ele literalmente
cheira os dois criminosos, tal como suas flores, para saber qual é
a diferença. E o último plano, entre o incompreendido e
o incompreensível, talvez possa ser entendido assim: um homem da
ingenuidade, um homem do profundo bem, só conseguirá atingir
o absoluto se colocando no lugar do mal, sem entretanto jamais ser capaz
de cometê-lo: ele próprio colocará suas algemas, ele
próprio tentará interpretar o mal. Pharaon é um santo,
um anjo que não consegue cair.
Além do próprio
enredo da história, A Humanidade ainda tem inteiras seqüências
de puro cinema, como a visita ao museu, as trepadas de Domino com o amigo
panaca, a visita de Pharaon ao museu onde as telas de um antepassado seu
são expostas, o interrogatório das crianças... É
pena que, em se tratando de um festival, não se possa dar a atenção
merecida a esse filme. Promessa então para quando esse filme estrear,
onde poderemos dissecar ele com mais propriedade e serenidade.
Ruy Gardnier
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