Hulk, de Ang Lee

The Hulk, EUA, 2003


Jennifer Connelly e Eric Bana em Hulk, de Ang Lee

Pais e filhos

Coincidência ou não, o presidente dos Estados Unidos é um júnior. E júnior representa, ao menos nas intenções do pai, o filho que vai seguir fielmente os passos do progenitor, que representará para a eternidade o legado do pai para o mundo, através do sangue e sobretudo das ações. O que põe para o pai o problema da transmissão – como introjetar em meu filho as idéias que quero? – e coloca para o filho o problema da liberdade – como posso agir de minha própria vontade, sem o medo de estar sendo guiado por uma marionete absoluta que decidiu toda a minha vida no momento que me criou? Entre o mundo do pai e o do filho, em Hulk Ang Lee toma partido do filho. O mundo dos pais é medonho: de um lado, há o belicismo estúpido, autoritário e negligente com seus deveres do poder constituído (o pai de Betty Ross, alta patente da Segurança Nacional americana); de outro, um cientista louco o suficiente para testar em si e no próprio filho uma fórmula para criar uma máquina de guerra perfeita, poderosa, sem comparação (o pai de Bruce Banner, o Hulk). Resta o mundo dos filhos: um mundo triste, que precisa ser reconstruído contra o poder dos capitalistas e do estado bélico – Bruce e Betty, ex-namorados, recusam-se a trabalhar numa grande empresa que lhes oferece um salário dez vezes maior porque acreditam que fazem ciência para o bem da humanidade, não para suas patentes aumentarem suas contas bancárias ou para o exército americano poder proteger-se melhor de seus inimigos.

Questão de paternidade, pois, e de como nosso passado determina nosso presente. Mas, acima de tudo, uma pesquisa sobre como alterar nosso passado para nos tornarmos diferentes no futuro, esse é o grande tema de Hulk. Curiosamente, até Magnólia, último filme de grande orçamento a tratar do tema, é referenciado numa piada hilária sobre chuva de sapos. Mas a saída, para Ang Lee, vai muito além do tolo "É conversando que a gente se entende" proposto ao fim do insuficiente filme de Paul Thomas Anderson. Em Hulk, se o diálogo não pode ser de igual pra igual, é melhor que ele não exista, que a conciliação seja impossível. É aí que surge o absolutamente inesperado: Ang Lee transforma-se em cineasta político. Hulk não é um super-herói, é Hulk não é uma mirabolante história de um monstro verde semi-irracional que sai destruindo tudo para nosso deleite espectatorial. Hulk é mais produto de um trauma infantil do que a resultante do encontro do corpo humano com uma emissão excessiva de raios "gama" – é o próprio filme que sublinha a natureza psicológica da "transformação". Quando criança, Bruce Banner foi exposto a dois traumas. Um, todos os leitores de quadrinhos conhecem (mesmo que o acidente, na época dos quadrinhos, tenha se passado quando Banner vivia sua vida adulta): exposição maciça a raios gama vindos de uma explosão no deserto. O outro, trauma familiar, foi presenciar o assassinato de sua mãe por seu pai, metros à sua frente. O jovem Bruce foraclui o acidente, nega o nome do pai, e dessa negação surge Hulk, uma raiva indiscriminada, ato de violência pura intronizado desde o instante em que o menino observou a instância repressiva assassinar a instância permissiva.

Daí poderíamos imaginar que surgiria uma narrativa clássica freudiana, em que o doente deveria reconhecer o nome do pai para livrar-se de sua doença. Nada disso: a análise selvagem de Ang Lee consiste em mostrar a infâmia do nome desse pai, mostrar como o monstro não é necessariamente o Hulk, mas tudo aquilo que o constituiu: pesquisa bélica, ódio, vontade de ser mais forte do que o outro. Hulk, o monstro que brota de Bruce Banner, tem uma dupla natureza simbólica: ao mesmo tempo é a revolta contra um pai indigno (logo é uma revolta legítima, por mais que os resultados dessa revolta não o sejam) e a carga genética adquirida, aquilo de que é necessário se desfazer para que um futuro melhor seja possível. Mas não há aí nenhuma dialética segundo a qual o pai dá a doença mas também o remédio: Hulk não é um remédio, é só a parte negativa do processo (a agressividade é apenas um ponto de partida, jamais um ponto de chegada). Resta a Bruce e Betty, juntos ou separados, encontrar um caminho a traçar radicalmente longe do ódio mútuo que une a violência oficial e a virulência marginal, Bush e Saddam/Osama.

Há muitos filmes em Hulk. A começar, há obviamente Juventude Transviada, filme por excelência da incompatibilidade de sensibilidade entre gerações: só há diálogo possível entre Bruce e Betty, todas as outras trocas de informações são da natureza da chantagem ou da coação. Assim, o personagem de Josh Lucas representa muito mais uma projeção da antiga geração – ou a mentalidade "à moda antiga" se fazendo precoce, a introjeção "certa" tendo funcionado – do que alguém igual de natureza ao casal de olhos verdes. Há, também, naturalmente, King Kong: o gigante irracional que não faz nada senão responder ao zênite todas as violências que foram feitas a ele, mas há também, e mais importante, a relação de amor com a mulher e a ternura vinda daí – a cena em que o Hulk pega sua musa parece saída da versão com Jessica Lange. Há, por fim e mais subrepticiamente, A Mosca: a relação mista e angustiante de amor e estranhamento – um amor que até floresce a partir desse estranhamento – com uma transformação em algo fisiologicamente nada humano.

Mas assim como há empréstimos de alguns filmes, há também muito de Ang Lee. Pois Hulk é provavelmente seu filme mais bem definido formalmente. É o primeiro em que há de fato subtexto, em que o andamento do filme não obedece fielmente às regras de composição da cartilha do bom artesão. Curiosamente, as cenas de ação são modestas e incrivelmente pouco chamativas para um filme desse quilate – à exceção da luta do Hulk contra os cachorros em cima das árvores, instante fulgurante que lembra os melhores momentos de O Tigre e o Dragão –, os efeitos especiais do monstro não são lá muito convincentes e a atuação de Eric Bana como Bruce Banner (como qualquer coisa, aliás) é sofrível. Em compensação, o que se ganha em elegância no manejo da câmera e na densidade da relação entre os personagens – é um dos poucos filmes em que seus personagens crescem em complexidade – justifica enormemente a opção por não fazer um filme de ação. North by northwest, acabou realizando com um blockbuster de consumo fácil seu melhor filme intimista sobre relações familiares.

Ang Lee, curiosamente, ainda revela uma outra faceta sua, inesperada: um certo devir-Soderbergh de brincadeira com formas narrativas. Que Hulk é um personagem de histórias em quadrinhos, OK. Que Ang Lee quisesse homeagear a proveniência de seu herói, nada mais normal. Mas que fizesse isso da maneira graciosa e voluntariosa de abrir diversos split-screens em momentos do filme para emular a sensação de estar diante de uma página de quadrinhos – emulação que é tão tola quanto deliciosa –, não era de se esperar. Em Hulk, Ang Lee consegue fazer com que a imagem tenha um gosto visual próprio sem cair na ostentação pura, terreno em que poucos além de De Palma conseguem construir algo sólido. Além dos split-screens, o uso conotativo do verde impressiona pela constância e pelo uso expressivo – algo que, mal ou bem, ele já havia utilizado em Razão e Sensibilidade, um filme bem verde nos matizes.

Verde, em todo caso, está associado a imaturidade, ao momento prévio à tomada de consciência. Filme de adolescência, com seus reflexos e suas problemáticas contra o poder e sua visão distorcida da vida adulta, alguns podem dizer. Coincidência ou não, há no mundo hoje uma infinidade de pessoas que se congrega em fóruns locais ou mundiais para tentar mostrar aos outros que um outro mundo é possível. Pessoas para as quais a lógica de que crescer é ter que sujar as mãos já não funciona mais tão bem quanto funcionava antes. Coincidência ou não, o casal de heróis de Hulk, Bruce e Betty, bem poderia fazer parte de uma ala de cientistas protestando a favor da abertura de certas patentes. Bruce e Betty são herdeiros de um passado problemático e passageiros de um futuro sombrio. Em todo caso, eles identificaram cedo o inimigo. Um futuro distanciado desses pais já é, em todo caso, uma esperança. E que isso seja problematizado num blockbuster já faz de Hulk o grande filme de smuggler do ano. Que venham outros.

Ruy Gardnier