O
Hotel de um Milhão de Dólares,
de Wim Wenders
The Million Dollar Hotel,
EUA, 1999
Wim Wenders parece
decidido a não mais filmar os corpos de seus personagens. Mesmo
que essa aproximação 'espiritual' que ele vem fazendo há
mais de uma década já se tivesse esboçado desde o
começo de sua carreira (Verão na Cidade é
um fime que parece falar sobre o nada), a maneira que o espírito
tinha de se comunicar era através do corpo. Essa fase deu, de longe,
seus melhores filmes, notadamente Alice nas Cidades e No Decurso
do Tempo. O cinema alemão finalmente parecia ter encontrado
uma vertente propriamente física com sua nouvelle vague
(o tríptico Fassbinder-Herzog-Wenders mais Schroeter, Schlöndorff
e outros). Mas a partir de Paris, Texas, o cinema passava a ser
outro. Não que a temática fosse diferente, mas sobretudo
o enfoque. O diálogo do 'espiritual' e a conotação
moral passavam a exercer controle da situação, secando aos
poucos o cinema de Wenders do quase documental ao sentimentalismo quase
barato.
E é assim que
O Hotel de um Milhão de Dólares aparece na obra de
Wenders. A situação às vezes apaixonante
não muda muito: um grupo de lunáticos, deslocados completamente
do modo de vida americano e de suas regras muito lógicas, habita
o Million Dollar Hotel numa saudável esquizofrenia, entre um artista
indígena, um sujeito que se acredita o verdadeiro compositor de
todas as músicas dos Beatles, um grupo de velhinhos e, principalmente,
de Tom-tom, narrador da história, que parece não bater muito
bem da bola, e de Heloise, linda garota perturbada que vive entre os livros
mas que não consegue viver a realidade.
A propósito
do aparente suícidio do melhor amigo de Tom-tom no topo do Hotel,
chega Mel Gibson como estranho policial para reverter as regras daquele
ecossistema pouco rígido mas bastante aconchegante. Ele está
convencido, graças à ânsia de imagem e de grana do
pai do jovem morto (ele era pintor, dizem os habitantes do hotel, e suas
telas agora já valem uma grana...), que não houve suicídio,
e ele chega no Hotel para descobrir, custe o que custar, um culpado. A
partir daí o foco narrativo degringola e não se sabe exatamente
de que trata o filme. Dos belos momentos de relação amorosa
que desenvolvem Heloise e Tom-tom? Da subtrama desimportante da autenticidade
dos quadros? Da maneira como Mel Gibson aparece como um mau caráter
e aos poucos vai adquirindo humanidade? De qualquer forma, é do
'espírito' de uma comunidade que ele trata, não mais da
sua atualização nos corpos dos personagens. O amor de Heloise
e Tom-tom é etéreo, inefável, jamais chega a uma
manifestação física.
Pois o único
personagem que tem corpo um corpo bizarro, de deformado
é o agente do FBI que Mel Gibson encarna. Tem corpo mais por suas
falhas do que como potência: originalmente com um terceiro braço
atrofiado, depois da operação ele tem que viver com um colete
que o faz ficar todo ereto. As cicatrizes que ele tem nas costas
mas será que isso não quer apenas 'significar' que ele tem
diversas máculas 'espirituais' no passado? são enomes
e muito feias, diferentemente do fetiche que elas evocam num Videodrome
ou num Crash, ambos de Cronenberg. Em Cronenberg, a gente experimenta
todos os novos furos do corpo; em Wim Wenders a gente esconde.
A aposta de O Hotel
de um Milhão de Dólares pode se restringir à
primeira cena, a do suicídio de Tom-tom (o filme é todo
um flashback a partir do momento em que ele vai cair no chão).
Numa música melo(sa)-dramática de Bono Vox, Jeremy Davies
corre em câmara lenta pelo teto do prédio ao lado do Million
Dollar Hotel. A câmara o acompanha ternamente, faz de sua corrida
ao precipício o início de um vôo. O que se perde nessa
brincadeira é justamente a dimensão do corpo o 'espírito'
jamais será afetado por esse vôo, enquanto a carne padecerá.
Perdido nessa busca do espírito mas filmando os corpos, o novo
filme de Wenders só consegue se fazer em pequenos detalhes, que
entretanto não valem o filme. A estratégia do novo filme
é a mesma de Asas do Desejo, mas nele o anjo realmente
vira carne, o que nao acontece aqui. Ao contrário: são humanos
tentando ser anjos. O que é até bonito, mas não convence.
Ruy Gardnier
|
|