Hamlet,
de Michael Almereyda


Hamlet, EUA, 2000

Uma vez que um diretor se disponha a uma tarefa do tipo "e se reencenássemos Hamlet em pleno ano 2000", imediatamente ele enfrenta dois problemas, e depois um terceiro, todos muito sérios e pelos quais se julgará ou não o sucesso da empreitada. A primeira questão é: há de fato uma razão o impelindo para tal? Há no diretor e no projeto uma "necessidade" de existir, algo de novo a expressar, ou trata-se apenas de um frio desafio de linguagem? Pode parecer pequeno, mas este é um problema seríssimo quando os artistas confrontam-se com os chamados "clássicos", pois há uma tendência à repetição ou à inovação vazia (ou seja, o respeito excessivo ou o desrespeito juvenil pela obra), e achar uma linha que esteja entre os dois, e um caminho que torne sua própria obra algo de importante pode ser muito difícil. O segundo problema direto é: porque trazer a peça para a atualidade? Há nela o suficiente que peça este olhar? Uma vez que se responda essas duas dúvidas iniciais, aparece a terceira: que artifícios usar para fazer esta transposição temporal (século dezessete para hoje) e de meios (teatro para cinema), quer resolva mais do que crie problemas? É inevitável que o crítico ou o teórico se reporte ao tipo de resposta dada pelo diretor a esta perguntas, quando tenta se posicionar favorável ou negativamente em relação à nova obra, à adaptação.

No caso deste filme de Almereyda, a segunda e a terceira parte do problema até que são bem resolvidos. Ele consegue achar uma linha de penetração no obra de Shakespeare que parece justificar perfeitamente sua atualidade e permanência no ano 2000. E encontra muitas soluções boas para as transposições necessárias. Por exemplo, em termos de adaptação temática e narrativa, a idéia de transformar o "reino da Dinamarca" numa grande corporação multinacional (Denmark Corporation), que permite misturar contemporaneidade com o esqueleto da peça. Melhor ainda ele se sai na transposição temporal e geográfica, ao incorporar a paisagem de Nova York (com destaque à cena no Guggenheim, e à cena onde os prédios formam uma imensa sombra por cima dos personagens, filmados de baixo); e também ao misturar uma interpretação corporal-expressiva naturalista e contemporânea pelos atores à declamação dos versos originais, criando ao invés do anacronismo, um híbrido surpreendente que revitaliza as palavras e as insere sem problemas nas cenas. Finalmente, a passagem de teatro para cinema é muito bem solucionada (e talvez fosse a mais traiçoeira), com o uso de repetições de cenas, projeções, fantasias, através de flash-forwards e flash-backs muito bem colocados, que resolvem cenas ou ligações entre personagens de uma forma que o teatro não poderia, usando assim ao máximo as ferramentas à mão. Em suma, Almereyda consegue provar, não teoricamente, mas na prática, a atualidade do texto e sua adequação a um ambiente moderno e a uma outra linguagem.

Há, porém, duas armadilhas às quais ele não consegue escapar. A primeira delas é a duração do filme, e os necessários cortes no texto original. Não se trata aqui de ficar comparando e ver se ele usou tudo, pois seria estúpido fazê-lo, claro que não, é completamente impossível. O que importa pensar é: o filme, por si só, se ressente de alguma falta de informação, tornando-se truncado. E aí, só se pode dizer sim. O que mais sofre na adaptação é a relação de Hamlet com Ofélia, que acaba indefinida no filme em sua profundidade ou não, em sua anterioridade à trama ou não, e principalmente, na má influência proposital que Hamlet exerce no que leva à morte de Ofélia. Tudo isso fica bastante prejudicado no filme. Outras ausências são solucionadas inteligentemente, como a opção de cortar toda a parte dos atores que encenam a "peça dentro da peça", tornando-a um filme feito pelo próprio Hamlet (que é um cineasta). Uma solução que deixa de fora sim muita coisa, mas que funciona porque centra a discussão em outros assuntos, justificando-se portanto. No caso de Hamlet/Ofélia não é assim, falta informação. O outro problema diz respeito ao uso de objetos ou sistemas tecnológicos modernos como solução para questões narrativas da peça. Algumas vezes o diretor se sai muito bem, como ao usar um microfone escondido em Ofélia para espionar Hamlet, ao ter um disquete como objeto que leva à morte de Rosencrantz e Guildenstern, ou ao usar uma arma de fogo para resolver a morte de Polônio. Ou ainda ao usar James Dean e um trecho de uma filmagem anterior do próprio texto como referências. No entanto, em alguns outros momentos Almereyda cai na armadilha da "atualização pela atualização", como os usos dados a faxes, Internet, e câmeras digitais no filme. Como o próprio diretor mostrou nos exemplos citados acima, não há porque apelar a sintomas óbvios de uma "modernidade" para tentar tornar o texto contemporâneo, pois ele se presta a isso com muita facilidade. Acaba ficando uma brincadeirinha vazia de encaixar o máximo de "2000" em Hamlet, sem preocupações com o que o filme em si pede.

Como se vê, podemos considerar que o diretor foi mais bem do que mal sucedido, conseguindo num primeiro momento justificar plenamente a existência de mais uma adaptação atualizada da peça para o cinema. Mas, ao final da sessão, fica uma pergunta incômoda lá no cantinho da mente: na prática, qual a real novidade que o filme traz, qual a informação nova que o espectador não tinha antes, no que o filme acrescenta às interpretações, seja de Hamlet, seja do mundo moderno? E é a esta questão que o filme não resiste, pois de fato nada de muito substancial fica da projeção. Jogamos durante duas horas um interessante joguinho de adaptação e de comparação, mas no final ele se resume a isso. Ganha o jogo no que se refere a aspectos práticos, mas não se sai muito bem no que realmente importava, a primeira pergunta lá de cima: o filme em si tem alguma função? O mais esperto pode argumentar que as peças de Shakespeare só tinham como função na sua época divertir as pessoas. Pode ser, mas elas ficaram para a eternidade por muito mais do que isso. E, afinal, este tipo de projeto se vende como mais sério e ambicioso que as produções do cinemão hollywoodiano de entertainment. E a verdade é que não consegue seduzir muito mais do que estes. De forma competente, e até esperta, é verdade, mas é só. "O resto, é silêncio."

Eduardo Valente