Cinzas da Guerra,
de Tim Blake Nelson

The grey zone, EUA, 2002


Antes de qualquer coisa, um mais do que necessário comentário: o mundo do cinema como "business" é muito estranho. Tudo bem, como veremos abaixo, o filme de Nelson é tudo menos "agradável". Mas também não é mais desagradável que uma série de coisas. Porém, é lançado nos EUA para conseguir um total de bilheteria de mais ou menos 500 mil dólares (um décimo do seu custo), e acaba no Brasil (até surpreendentemente) pelas mãos de uma micro-distribuidora, que só consegue três horários em uma sala do Rio (logo na menos recomendada para o tipo de filme que é: o UCI). Tudo muito, muito estranho... Estranho, em primeiro lugar, porque o filme é muito bom. Mas não só é bom como tem atrativos, a começar por um elenco onde estão Mira Sorvino, Harvey Keitel, Steve Buscemi, entre outros. Mas, vá entender...

O que torna Cinzas da Guerra um bom filme, antes de qualquer outra coisa, é que seu diretor (que além de roteirista é o autor da peça que deu origem ao filme) consegue fazer o que parecia já impossível (pelo menos para mim): contra uma história sobre o Holocausto que não havia sido contada. Que história é essa? A dos judeus que eram cooptados a fazer o trabalho sujo dos campos de concentração (como queimar e carregar os corpos, preparar as pessoas que iam entrar nas câmaras de gás, etc), tendo como "prêmio" uma sobrevivência levemente mais longa. A situação dessas pessoas é uma das mais trágicas da história humana: perpetuar sua vida a partir da morte de tantos outros. Mas, mais do que apenas a história: Nelson consegue contá-la de uma forma que ainda não se havia usado. Que forma é essa? Uma fascinante mistura de teatralidade e dramaturgia com uma encenação de um realismo duro quase ao ponto da afronta. Nunca se pareceu tanto que havia uma câmera dentro dos campos de concentração. Isso porque Nelson opta por mostrar os atos banais (que de banais nada tinham) do dia a dia dessas pessoas: os crematórios, os "banhos", a queima a céu aberto. Tudo mecanizado, estruturado como uma fábrica de morte, e é assim que Nelson filma: como quem constata o horror, porque ele fala por si e não precisa de artifícios.

Uma outra enorme qualidade do filme de Nelson é que ele nunca passa a mão na cabeça dos seus personagens (o que pode ser uma das maiores razões para seu tratamento tão complicado na distribuição). Os supostos "heróis" por quem devemos torcer vivem com toda força os dilemas morais de sua posição. Um deles mata um outro judeu a socos (numa cena impressionante) apenas porque ele o lembra obsessivamente de sua condição ambígua. Outros já abrem o filme sufocando um prisioneiro com um travesseiro até a morte. Ou seja: não há mais espaço para santos, todos são maculados pelo horror que os cerca.

Se por um lado o filme consegue um extremo e incômodo realismo (especialmente nas cenas de dia a dia), o fato de se basear em texto teatral dá ao filme uma interessantíssima dualidade. Nas ótimas cenas de diálogos, há uma urgência que parece vir da encenação quase sempre claustrofóbica de cada uma das situações. É como se cada ambiente fosse em si mesmo um campo de concentração. Os confrontos, conluios e simpatias são extremadas, dramáticas. Seu tom pareceria entrar em conflito com o das outras filmagens (quase "documentais"), mas há uma complementação interessante que mantém o filme sempre vivo. No elenco, apesar dos nomes conhecidos estarem adequados, quem impressiona de fato são Daniel Benzali (que, por curiosidade, é carioca de nascimento) e David Chandler, que interpretam seus personagens de prisioneiros com tamanha carga de ódio, ressentimento e dor em cada olhar e gesto, que certamente emprestam ao filme boa parte de sua força. Há um misto de incredulidade e conformismo na suas ações que nos assombram sempre.

Cinzas da Guerra é dramaticamente muito bem estruturado, porque não permite que o drama se sobreponha ao horror nem vice-versa. Também não permite um outro erro clássico de filmes de Holocausto que é colocar uma vitória pessoal acima da inútil perda de tantas vidas. Aqui não há heroísmo, nem tipificações, apenas seres humanos vivendo um tempo e situação que nenhuma mente sã poderia desejar a ninguém. E sentindo o peso disso em cada gesto de cada dia. Há imagens e sons aqui difíceis de serem esquecidas, como a já citada cena do espancamento, mas ainda a do sacrifício na cerca, a dos crematórios ou a das execuções finais. Nelson consegue recolocar nessas cenas o horror que parecia perdido em tantas repetições artísticas destes fatos, nesse já autêntico gênero que é o "filme de Holocausto". Se fosse só por isso, seu filme já teria inegáveis méritos, mas ele merece muito mais crédito por fazer disso material dramático ao mesmo tempo respeitoso e corajoso.

Eduardo Valente