Gregório
de Mattos,
de Ana Carolina
Brasil, 2002
O cinema brasileiro não vem sendo exatamente bem-sucedido ao transpor
para a tela a vida e os poemas de alguns de seus grandes poetas. Só
para dar uma rápida rememorada: o lastimável Castro Alves
de Sílvio Tendler, o acadêmico e frouxo Cruz e Souza
de Sylvio Back e o sem propósito Poeta de Sete Faces de
Paulo Thiago, sobre Carlos Drummond. Naturalmente, os defeitos de cada
um desses filmes são bem particulares, variando entre a total incompreensão
da estatura e da obra do artista (Poeta de Sete Faces), preguiça
intelectual e indigência artística (Castro Alves)
ou simplesmente mão pesada (Cruz e Souza), mas uma coisa
acima de tudo parece unir esses filmes: a falta de um conceito que possa
estruturar o filme e dar uma visão do artista e da arte para além
do meramente ilustrativo ou biográfico. Ainda: a falta de ponto
de vista do artista que realiza o filme em relação ao artista
que está sendo retratado. Deste pecado, aliás, sofre até
um filme infinitamente superior aos já citados, o belo Bocage
O Triunfo do Amor, de Djalma Limongi Batista.
Aí vem Ana
Carolina, que depois seu primeiro filme, Getúlio Vargas,
tinha centrado seu cinema exclusivamente em torno da figura feminina,
sobretudo na histeria de suas personagens e nos demais distúrbios
psicológicos que suas personagens exprimiam confrontadas às
regras e aos valores sociais que exigem de todos um comportamento padronizado
e o recalcamento dos desejos em nome de uma vida amena e "civilizada".
A própria diretora, aliás, gosta de considerar Gregório
de Mattos uma espécie de "filme pequeno" (no sentido
de produção pouco custosa) no meio de dois filmes grandes.
Evidência enganosa: Gregório de Mattos não
é um "filme menor" ou um pequeno filme. Evidentemente,
também não se trata de um projeto megalômano de filme
histórico. A grande estatura do filme diz respeito principalmente
ao modo como Ana Carolina se posiciona em relação a seu
personagem-retratado. Lá onde todos os realizadores supõem
um distanciamente regulamentar (que em geral não tem nada de crítico,
apenas de burocrático), Ana Carolina faz de seu filme a arte da
imbricação e se funde em seu personagem de tal forma que
já não se trata mais de um filme sobre um poeta,
mas um filme de elogio à poesia e à vida como poesia. Curiosamente,
ao fazer o retrato de um poeta, homem, de quatro séculos atrás,
a realizadora de Mar de Rosas e Amélia revive uma
a uma suas principais preocupações como cineasta, como o
comentário cínico sobre o recato da sociedade, as hordas
de mulheres que servem como guardiãs legitimadas dos bons costumes,
o histrionismo e a verborragia como formas de romper formalmente
na marra o bom tecido burguês do bom comportamento. A má
conduta e a impertinência do poeta Gregório de Mattos são
aqui motivos para dar continuidade e coerência a uma trajetória
de realizadora ela mesma impertinente e mal-comportada, eternamente descontente
da hipocrisia e dos ritmos sociais, caminhando à velocidade de
tartaruga.
E se fale de velocidade
para falar de Gregório de Mattos. Sua exuberância
vem sobretudo do fato de tratar a palavra como um punho fechado, disposto
a acertar quem passar em frente, do moralismo do próximo à
cona da próxima, das safadezas dos nobres aos hábitos nada
pudicos dos baianos, a quem são endereçados diversos de
seus poemas. Ana Carolina orquestra seu filme como uma espécie
atribulada de luta de boxe, em que os jabs, upper-cuts e
diretos são substituídos por versos de amor, erotismo, pornografia
e sarcasmo que golpeiam frontalmente os inimigos costumeiros (religiosos,
políticos, mantenedores da moral em geral). A velocidade é
estonteante, e dá muito pouco tempo para nos nortearmos diante
daquilo que estamos vendo: não há quadro histórico
e tampouco um contraplano mais objetivo do efeito daqueles versos no seio
da sociedade baiana do momento (a não ser, se contarmos, as caras
de espanto das freiras e dos padres ao ouvir palavras e idéias
de baixo calão). Não é isso que interessa a Ana Carolina.
O que lhe diz respeito é antes de tudo construir um fluxo de palavras
que espelhe e dê contundência aos versos e à postura
do poeta baiano. Se em geral nos filmes de poetas a declamação
costuma ser apenas uma obrigação regulamentar, em Gregório
de Mattos Ana Carolina faz desse ato próprio da poesia o centro
ordenador e o motor do filme (o que fez, aliás, de forma muito
parecida Manoel de Oliveira no belo Palavra e Utopia). E há
de convir que, para realizar esse objetivo, não há escolha
de casting mais perfeita ("adequada" seria pouco) do
que Waly Salomão, também poeta do desejo, apesar de sê-lo
em chave mais sensual do que provocativa. Toda a faceta metralhadora-giratória
do filme, sustentada pela estrutura da obra através da palavra,
é ratificada e elaborada pela imponência volumosa e pela
prosódia gritada de Waly.
Obra de um fôlego
só (caminha em linha reta, sem muitas sinuosidades, ao longo de
seus mais que 70 minutos), Gregório de Mattos é mais
filme-dispostivo do que filme-experimento. Sua veemência de proposta
e de propósito não são talvez as mais palatáveis
do ponto de vista da fruição do espectador médio,
mas há de experimento muito pouco, ao contrário do que um
ou outro comentário a respeito do filme fez crer. Mas isso não
é demérito: a obra não pede tanto esse tipo de procedimento.
Se existe demérito no filme, talvez ele esteja na passagem fácil
demais de um tema para outro, ou na própria constutuição
de "blocos de roteiro" para narrar o filme. Isso cria um esquematismo
que por vezes fica muito desinteressante, geralmente como Marília
Gabriela (ademais, bastante adequada no papel) jogando a bola limpinha
para Waly/Gregório: "E a Bahia, poeta?", "E a vida?",
"E o amor?". Pecado menor, certamente, mas que em algum momento
prejudica um pouco o filme. Gregório de Mattos é um sortudo:
encontrou na pele de Ana Carolina uma forte oportunidade de mais uma vez
encantar e provocar o mundo com sua lábia. Juntos, acoplados, os
dois realizam um coito que é bonito de se ver e de se ouvir. Um
coito que chama vários.
Ruy Gardnier
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