Assassinato em Gosford Park,
de Robert Altman

Gosford Park, EUA, 2001


A sequência que acompanha os créditos de Assassinato em Gosford Park adianta em poucos minutos, de forma concisa e inteligente, todo o restante da narrativa: sob uma chuva torrencial, os serviçais (motorista, acompanhante) se desdobram para que a condessa interpretada por Maggie Smith, embarque sequinha no carro que irá levá-la à casa que dá título ao filme, enquanto a condessa permanece indiferente ao que se passa a sua volta. É para cima deste ar de superioridade e alienação, típico da classe alta britânica, que o mestre Robert Altman aponta agora sua visão crítica e amarga do mundo. Após dissecar sagradas instituições americanas (exército, casamento, musica popular, Hollywood, só para ficar entre seus trabalhos principais), Altman volta-se agora para o velho mundo, mostrando algumas das razões pelas quais parte desse mundo não somente envelheceu, mas também caducou e morreu.

O filme parte de uma situação absolutamente clichê: no início da década de 1930, um grupo de nobres passa um final de semana em uma propriedade rural de um poderoso lorde, com direito a caçadas e jantares formais. Uma outra abordagem crítica deste ritual tipicamente britânico já havia sido feita em The shooting party, de Alan Bridges, de 1985. Mas esta abordagem seria um tanto quanto limitada, pois o distanciamento do americano Altman favorece um desenvolvimento mais inteligente e divertido que a visão acadêmica e rancorosa do cineasta inglês. Além disso, Assassinato em Gosford Park não foca sua atenção apenas nos nobres, mas retrata também a criadagem, que não somente se submete a uma estrutura de rígida divisão de classes, como a repete fielmente em sua intimidade.

Robert Altman reproduz mais uma vez de forma brilhante seu tradicional formato de múltiplos personagens, ações paralelas, diálogos cruzados e cenários restritos para retratar o microcosmo das relações nobreza/proletariado, mas o faz sem discursos políticos. Se coloca até certo ponto dentro da ação, como o produtor americano interpretado por Bob Balaban, que é admitido na festa para colher material para um filme. Vale ressaltar que, se os empregados recebem dos nobres uma grande indiferença, os artistas são alvo do mais profundo desprezo, principalmente os americanos. A personagem de Maggie Smith é o maior porta voz deste desprezo, que se estende até mesmo ao maior astro do cinema inglês da época, Ivor Novello (personagem real, interpretado por Jeremy Northan), que lá está somente para divertir os convivas. Um momento bastante interessante se dá quando Novello canta e toca piano para os grã-finos entediados, enquanto na cozinha e áreas a eles reservadas, os serviçais param suas atividades para ouvi-lo e cultuar seu ídolo.

O título brasileiro, que faz uso da palavra "assassinato", pode dar ao espectador desavisado uma idéia errada de que se trata de um whodunit à maneira dos livros de Agatha Christie, ou seja, uma narrativa na qual toda a graça se concentra em descobrir quem cometeu um crime. Altman e seu roteirista Julian Felowes, no entanto, usam a possibilidade do crime como ponto de partida para, a seu modo, subverter as estruturas tão caras aos romances criminais. A iminência do assassinato é prenunciada em diversos instantes: a todo momento a câmera mostra frascos onde está escrito "veneno", e, obviamente, quase todos os presentes têm seus rancores contra a vítima em questão (o grosseiro anfitrião, interpretado por Michael Gambon). Entretanto, depois que o crime se configura, nada parece se alterar na rotina da casa. A própria viúva (Kristin Scott Thomas)

recebe em seu quarto o personagem de Ryan Philippe afirmando que "a vida continua". O ato de se achar o criminoso tem uma importância secundária na narrativa e causa aborrecimento em todos os presentes, pois leva uma quebra na rotina. Ao invés do detetive perspicaz, temos um policial incompetente (Stephen Fry, numa caracterização que homenageia Jacques Tati), ao qual nobres e serviçais não dão a menor atenção.

Assassinato em Gosford Park trata de coisas sérias de uma maneira bastante divertida. Altman vai fundo na crítica à alienação da nobreza britânica que investe na manutenção de um status-quo completamente ultrapassado, alienação esta com a qual os serviçais parecem estar igualmente coniventes. Tanto nobres como criados parecem punir com a mesma crueldade aqueles que de alguma forma transpõem as marcadas fronteiras entre as classes ou entre os diferentes espaços de Gosford Park, como a criada Elsie (Emily Watson) ou o ator amercano Henry Danton (Ryan Phillippe), que se faz passar por empregado para compor um personagem. E, sob uma perspectiva histórica, todos parecem ignorar a situação política mundial que os cerca como a ascensão do fascismo, a proximidade da guerra e o domínio do capitalismo americano.

A direção de Altman é extremamente criativa e requintada, com sua câmera fluindo de maneira admirável por todos os espaços da casa. Esta, por sinal, pode ser considerada como um personagem em si. Vale destacar a qualidade da cenografia e direção de arte, a cargo do filho do diretor, Stephen Altman. Ao contrário da grande maioria dos filmes de época, nas quais os cenários muitas vezes parecem saltar aos olhos do espectador, no filme em questão eles complementam a ação numa constante interação com os personagens e a narrativa. O mesmo acontece com os figurinos e a fotografia. A montagem, assinada por Tim Squyres, é também preciosa. Assassinato em Gosford Park transcende as diversas limitações dos modelos cinematográficos nos quais parece a princípio se enquadrar. No entanto, essa falsa aparência de diversão inócua parece ter pesado favoravelmente a ele no que se refere a uma aceitação por setores mais tradicionais da indústria cinematográfica americana, o que poderá se refletir na possibilidade de vitória de Robert Altman como melhor diretor no Oscar.

Para finalizar, vale a pena dizer que, mesmo não sendo uma obra-prima como MASH, Nashville ou O Jogador, Assassinato em Gosford Park é um filme digno dos grandes momentos de seu diretor. O melhor desde Shortcuts, mesmo com uma certa queda de rendimento em seus minutos finais, nos quais a ação se concentra na questão da paternidade do personagem de Clive Owen, o que, em compensação, serve de escada para o brilho da grande Helen Mirren. Mas já é tarde. Nada parece estragar um filme do qual se sai com o inequívoco desejo de assistir a tudo outra vez. Uma sensação cada vez mais rara atualmente.

Gilberto Silva Jr.