Fantasmas
de Marte,
de John Carpenter
Ghosts
of mars, EUA, 2001
Existe uma enorme ironia no fato dos filmes de John Carpenter virem sempre
com sua assinatura na versão original do título. E esta
ironia está clara na dissecação da obra do diretor
feita em Contracampo 35: embora seja um diretor que fuja ao máximo
de uma certa "função" facilmente reconhecível na
parte estética, trata-se de um cineasta que impressiona pela (e
coerência parece até uma forma menor) obsessão com
seus temas, personagens e narrativas. Na imensa maioria dos seus filmes
pode-se traçar algumas linhas de contato, repetição,
depuração, onde as variações apenas reforçam
a força do constante. E neste Fantasmas de Marte chega a
ser quase anedótico o número de semelhanças: temos
o grupo preso e cercado pelos inimigos (de tantos filmes, mas principalmente
de Assalto à 13ª D.P.), temos o adversário que possui
o corpo dos personagens (Enigma do Outro Mundo), temos o marginal
usado pelas forças do Estado para seu próprio bem que as
subverte no final (Fuga de Nova York), temos as forças que
retornam para retomar o que é seu (A Bruma Assassina). Em
suma, as linhas todas comprovam o que o título explicita: trata-se
de um filme de John Carpenter. Tamanha identificação possui
uma certa dualidade, onde o reconhecimento de temas e motivos considerados
relevantes pelo autor se misturam com uma certa tendência a repetição,
ao esperado. É como se todo filme de Carpenter se munisse desta
herança, mas também fosse confrontado por ela.
Os tempos atuais permitem
sim algumas novas leituras do trabalho dele, que ajudam a explicar inclusive
seu sucesso na França e fracasso nos EUA. Existe por trás
da história um conteúdo que pode facilmente ser lido como
anti-globalização ou mesmo relações com o
terrorismo. Até mesmo nas palavras da personagem de Natasha Henstridge,
que justamente é a corporificação do Estado organizado
(ainda que necessitando de drogas para enfrentar a vida), existe admiração
pelo seu adversário, que é em última instância
a representação da cultura local lutando contra a invasão
do império. Não por acaso o filme nunca dá os braços
ao sistema reinante, e faz de seu maior herói positivo um excluído
deste, um marginal. Carpenter não se debanda nem aos vilões
nem aos mocinhos, colocando-se num distanciamento quase respeitoso, personificado
mesmo no trabalho de Ice Cube, como figura distante de ambos os extremos
que luta pela sua sobrevivência, somente.
O filme possui uma
selvageria impressionante de parte a parte, onde a violência atinge
níveis assustadores, e o ódio do adversário do império
é tamanho e tão irracional quanto é incompreensível
sua língua. Esta reação raivosa pode ser comparada
aos movimentos anti-globalização ou até ao terrorismo
islâmico, embora trate-se necessariamente de observação
a posteriori. O fato é que a comparação com
o terrorismo fundamentalista é interessante, uma vez que o poderio
tecnológico evidente do império não consegue impedir
que os inimigos (que saem das cavernas), usem seu ódio irracional,
seu número maior, e sua capacidade de penetrar escondido na casa
e na pele do adversário, para impedir de fato uma vitória
final catártica da parte do império. No quesito "retrato
do seu tempo", o filme faz bela dupla em 2001 com o Planeta dos Macacos
de Burton.
Esteticamente o trabalho
de fotografia e direção de arte ressalta o vermelho (inevitável
em Marte), mas o que impressiona mesmo é a trilha do próprio
Carpenter que dá o tom selvagem do filme. O uso da câmera
ponto de vista dos marcianos também é uma marca do diretor,
sempre funcional para criar o clima de terror buscado. Alguns artifícios
(como o corte em movimento ou o intrincado jogo de flashbacks)
não chegam a ser usados totalmente a contendo, mas o filme não
perde muito com isso. No máximo deixa de ganhar, porque a impressão
que fica é que se queria ir com eles a algum outro lugar a que
o filme nunca chega.
Ao se dizer que é
um típico Carpenter o que se está dizendo é, em resumo:
filmagem do cinema de gênero da mais alta competência, coerência
e dureza política e ideológica e muitas relações
com o trabalho anterior. Neste sentido Fantasmas de Marte dá
continuidade a esta obra, sem guinadas ou novidades, mas sempre com interesse,
domínio do trabalho e camadas suficientes para entreter e fazer
pensar até o menos fervoroso dos fãs. Ou em resposta ao
colega do JB: de fato, o filme se passa em Marte como podia se passar
em qualquer outro planeta. Até mesmo a Terra, em 2002.
Eduardo Valente
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