Gangues de Nova York,
de Martin Scorsese
Gangs of New York, Itália/EUA/Alemanha/Holanda/Reino Unido,
2002
Ao
longo de praticamente toda sua carreira, Martin Scorsese vem realizando
uma espécie de retrato histórico e sociológico de sua Nova York natal.
Seu foco inicial foi centrado em personagens mariginalizados e gângsters
de segundo escalão, como em Caminhos
Perigosos (1974), chegando até Os
Bons Companheiros (1990), passando por figuras emblemáticas provenientes
das camadas de imigrantes e empobrecidos como em Taxi
Driver (1976) e Touro Indomável
(1980). Como ponto em comum, seus personagens carregam uma marcada
herança de violência. Mesmo ao se desviar um pouco deste trajeto, o
retrato de sua cidade se manifesta inequivocamente, como em Depois
de Horas (1986), caracterização específica de determinado momento
da década de 80. Com A Época da Inocência (1993) transportou
seu foco para a classe alta novaiorquina do fim do século XIX, na qual
a violência das convenções sociais podia ser tão ou mais embrutecedora
que a violência física. Porém há mais de duas décadas seu projeto de
sonho vinha sendo um trabalho sobre o mais explícito momento de violência
e convulsão na história da metrópole, quando, durante o período correspondente
à Guerra Civil Americana e ao governo de Abraham Lincoln, uma expressiva
parte da cidade era composta por favelas dominadas por ferozes bandos
armados em constante confronto entre si, numa brutalidade insana que
explodiria numa onda de protestos contra a convocação para a guerra,
na qual a cidade foi atingida por violentos conflitos de rua, com a
morte de milhares de pessoas.
Desde
as sequências iniciais de Gangues
de Nova York, a tal herança de violência já está caracterizada,
quando, ao se preparar para um combate, o “reverendo” Vallon (Liam Neeson)
demonstra a seu filho o uso da navalha como arma, na qual “o sangue
permanece”. À medida que Vallon vai unindo seu grupo para a luta, fica
também marcada a presença da religiosidade mesclada à violência, tão
constante na obra de Scorsese, que vai apresentando personagens e cenário
de forma hipnótica, à medida que vamos percebendo que, aquilo que parecia
apenas uma oficina de ferreiro é uma enorme cabeça-de-porco, uma espécie
de depósito humano onde gente e mais gente se apinha da forma mais promíscua
e insalubre. Quando os personagens passam para a rua, a escuridão do
cortiço contrasta com a placidez da praça coberta pela neve. Só que
esta neve será manchada pelo sangue na luta de dois grupos opostos:
os Coelhos Mortos, liderados por Vallon, compostos basicamente por imigrantes
irlandeses católicos; e os Nativistas, protestantes, americanos há algumas
gerações, liderados por Bill the Butcher (Daniel Day Lewis), que disputam
o poder na região chamada Five Points. O que se segue é um dos mais
assustadores combates já mostrados pelo cinema, com os rivais se enfrentando
cara-a-cara, atacando uns ous outros a facadas e machadadas. Ao final,
Vallon é morto por Bill, sob os olhos de seu filho Amsterdam, que foge
desesperado. Após quinze anos, Amsterdam (Leonardo Di Caprio) retorna
a Five Points e se une ao grupo de Bill para perpetuar sua vingança.
Scorsese
parte, como é bastante comum em obras de ficção, seja em cinema, teatro
ou literatura, de um drama individual que servirá como pretexto para
se retratar um todo, como já fizera, por exemplo, em Os
Bons Companheiros, onde a máfia é vista através de Henry Hill (Ray
Liotta). E se utiliza de um dos temas mais antigos e arquetípicos para
emoldurar o seu painel: a vingança pela morte do pai. Então Amsterdam
é uma espécie de Hamlet plebeu, que irá ao encontro de seu destino trágico,
no qual Bill the Butcher ocupará o lugar do tio usurpador, desenvolvendo,
à sua maneira, uma relação paternal com o jovem, sem conhecer
sua identidade. É o olhar de Amsterdam que será o guia para que o espectador
conheça a realidade desta face oculta de Nova York no início da década
de 1860. A chegada à cidade de um grande número de imigrantes (principalmente
irlandeses) e negros recém-libertos, acentuara as diferenças e disputas
por trabalho, com o Five Points sendo lar das mais diversas espécies
de quadrilhas e tribos, sobre as quais Bill paira soberano. O rapaz,
saído de um orfanato católico, encontra, para sua surpresa, antigos
membros dos Coelhos Mortos submissos ao lider nativista, como McGloin
(Gary Lewis), um de seus capangas, ou Happy Jack (John C. Reilly), agora
o omisso e corrupto policial responsável pela região. Esta promíscua
cumplicidade entre o poder oficial e o paralelo também é retratada no
político oportunista William Tweed (Jim Broadbent).
Então
o conjunto vai sendo apresentado ao espectador com inegável eficiência
e talento pelo diretor que utiliza a simpática figura de Leonardo Di
Caprio como fator de identificação. É claro que, dentro do enorme caldeirão
de referências históricas e culturais, muitas informações são apresentadas
ou tratadas de maneira superficial, mas não era intenção do diretor
realizar um documentário. Se seus personagens são herdeiros e perpetuadores
de uma tradição de violência, Scorsese é certamente um dos maiores herdeiros
e perpetuadores das tradições do cinema americano clássico. E constrói
Gangues de Nova York como
um épico grandioso, onde seus personagens, ao invés dos mártires e vitoriosos
habituais, são figuras marginais como muitas outras ao longo de sua
obra. E se o roteiro, assinado por Jay Cocks, Steven Zaillian e Kenneth
Lonnergan - mas que certamente contou com diversos outros colaboradores
e foi concebido e coordenado pelo diretor – não traz situações a rigor
originais, tal se deve à opção de trabalhar com figuras e situações
essencialmente trágicas e arquetípicas,
como já foi sublinhado. Temos uma “mocinha”, no caso também de origem
e comportamento marginal, a ladra Jenny Everdeane (Cameron Diaz), interesse
romântico de concretização tempestuosa para o protagonista, uma vez
que esta tem um passado com Bill, acentuando as diferenças entre os
dois personagens. Há também a figura do melhor amigo (Henry Thomas),
que trai o herói por ciúme, num registro próximo ao Iago de Otelo,
e eternas dívidas de sangue, com Amsterdam chegando a salvar a vida
de Bill. E por que não destacar a sequência climática em um teatro,
uma espécie de espetáculo dentro do espetáculo (e olhe aí Hamlet
outra vez), durante a qual Bill agride e expulsa Amsterdam, invertendo
o momento escolhido por este para a sua vingança. E a conclusão do filme
reforça o já mencionado conceito do individual sobrepondo o coletivo,
com Amsterdam e Bill the Butcher realizando seu confronto decisivo em
meio à destruição da cidade pelos motins.
Dentro
de uma tradição épica do cinema americano, Gangues
de Nova York pode ser visto como um E
o Vento Levou... às avessas, no qual, apesar de ambos se passarem
durante o mesmo período histórico, o cenário rural é substituído por
uma ambientação urbana; ao invés da protagonista feminina que busca
ao mesmo tempo condição social, estabilidade e amor, temos um herói
movido pelo ódio, sendo que ambos certamente não são imbuídos de uma
conduta ética para a concretização de seus objetivos e compartilham
um inequívoco senso de sobrevivência. Temos, assim, dois lados de uma
mesma América, opondo não somente os quadros geo-políticos de sul e
norte dos EUA, então envolvidos numa guerra, mas também a visão romanceada
e saudosista da história concebida por Margaret Mitchell à crueza de
uma realidade onde impera a injustiça, a violência e o desgoverno. Esta
comparação pode ser reforçada a partir do momento em que Gangues de Nova York faz uma citação explícita a ...E o Vento Levou quando, quase ao fim
do filme, após os confrontos pela cidade, Jenny caminha entre os corpos
com a câmera se afastando dela com uma panorâmica, de forma idêntica
ao momento em que Scarlet O’Hara percorre a Atlanta devastada pela guerra.
No
que diz respeito às conotações políticas de Gangues
de Nova York, estas são por demais evidentes para serem ignoradas.
Temos é claro o retrato da nação construída dentro do ódio e da diversidade.
Mas o quadro apresentado pelo filme não é nada coerente com a imagem
de construção de um ideal de democracia e igualdade acima de tudo que
tanto a propaganda política americana quanto seu cinema, por sinal um
dos instrumentos-mor desta propaganda, insistem em perpetuar. Temos
uma extensa camada da população excluída e ignorada em suas necessidades,
usada como instrumento para disputas que não são suas, como eleições
roubadas (Tweed saúda a incessante chegada de imigrantes como um aumento
do número de eleitores), ou pior, convocada para morrer em uma guerra
que lhe é alheia, o que gera os motins retratados ao fim da fita, durante
os quais é violentamente esmagada pela força policial e militar. É certo
que Scorsese destaca que o ódio e a violência contribuíram para a formação
de uma identidade nacional americana. Mas, ao longo dos 140 anos que
separam a época na qual se passa o filme da conjuntura atual, se no
âmbito internacional a política dos EUA aproveita esse ódio numa infinita
conclamação a guerras, como vemos atualmente na ameaça de invasão ao
Iraque, a realidade interna não consegue escamotear o ressentimento
e as diverdades entre raças e grupos sociais. É assim que Bill the Butcher
pode ser considerado um antepassado dileto do Travis Bickle (Robert
De Niro) de Taxi Driver.
Notadamente,
o longo período de tempo entre sua concepção e sua conclusão e lançamento
prejudicaram Gangues de Nova York até certo ponto, impedindo
que este ocupe, como era o sonho do cineasta, um lugar entre suas obras-primas,
junto a Taxi Driver, Touro Indomável,
A Última Tentação de Cristo e Os Bons Companheiros. E os poucos defeitos que o impedem de sê-lo
são praticamente inerentes à atual política de criação e produção do
cinema americano, se refletindo numa excessiva preocupação quanto à
duração, que transparece em personagens que aparentam ter tido sua importância
reduzida em função de cortes, como o policial de John C. Reilly, um
reflexo da velha intervenção criminosa do produtor, no caso o ditatorial
Harvey Weinstein da Miramax, que parece ter contribuído de forma
notável para tumultuar a já difícil realização da fita. Ou a quase cômica
preocupação em preservar a suposta “beleza” do ator Leonardo Di Caprio,
vista na timidez em retratar as cicatrizes que o rosto de seu personagem
deveria ir adquirindo ao longo do filme. Também problemas de ordem extra-cinematográfia,
como o atentado de 11 de setembro de 2001, que contribuiu para que a
estréia fosse adiada pos um ano, e que parece ter levado a uma certa
amenização de alguns momentos de violência, de forma a não “agredir”
a audiência. São pequenos senões que, como já dissemos, impedem o filme
de chegar ao patamar de obra-prima, mas que são compensados pelo vigor
ou, por que não dizer, tesão com que Martin Scorsese concebe cada plano,
dirigindo com sua maestria habitual; pela uniformidade e equilíbrio
da produção, com fotografia, direção de arte, figurinos e música trabalhando
em função do conjunto, sem oprimir o espectador, como é comum em produções
de fundo histórico; ou pela genial interpretação de Daniel Day Lewis,
um ator capaz de ser a voz de Scorsese tanto no boçal Bill the Butcher
quanto no aristocrático Newland Archer de A
Época da Inocência. Mas acima de tudo Gangues
de Nova York é um grande espetáculo cinematográfico como cada vez
se faz mais raro de se ver e indiscutivelmente um filme que o espectador
carregará consigo não somente nas horas que se seguem à projeçao, mas
por toda a sua vida.
Gilberto Silva Jr.
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