Encontrando Forrester,
de Gus Van Sant


Meeting Forrester, EUA, 2000

Gênio Indomável

A primeira imagem depois dos créditos já nos ensina: em traveling, com a proximidade de um plano detalhe, sempre perto demais, vemos uma pilha de livros (conseguimos ver Tchekov, Kierkegaard, Joyce, entre outros...) e, em seguida, a câmera desliza pelo corpo do jovem negro até chegar em seu rosto. A aposta está lançada desde cedo: nesse filme de Gus Van Sant, trata-se antes de tudo de filmar "de perto", de justamente pela proximidade tentar filmar o ponto de ebulição, o momento em que brota o talento de um moleque de 16 anos no Bronx que, além de ser brilhante jogador de basquetebol, tem dons literários incríveis. Sim, em se tratando de Gus Van Sant e de um adolescente com o QI do tamanho do Empire State, qualquer um vai imaginar o chavão "já vimos este filme". Aquele que, entretanto, quiser pagar para ver não encontrará um remake, mas sobretudo a verdadeira concretização de Gênio Indomável, e um mergulho no personagem de exceção como o próprio Van Sant não fazia desde seus primórdios, com Drugstore Cowboy (até hoje seu filme de referência) e Garotos de Programa.

Os créditos iniciais e finais já nos servem para enquadrar o ambiente: um garoto negro e pobre só pode ser ascender socialmente sendo rapper (começo do filme) ou jogador de basquete (como o filme termina). Entre as duas extremidades, Encontrando Forrester tentará provar que um menino, o talentoso Jamal Wallace, poderá ultrapassar esse destino estereotipado (sendo ele mesmo excelente com a bola laranja e seu irmão excelente nas rimas faladas) para tornar-se um escritor promissor, mesmo que para isso precise encarar e superar todos os olhos invejosos de uma elite branca e artificialmente embelezada, flor de estufa. Jamal emerge como antípoda da juventude endinheirada. Criado na rua, trabalha ao mesmo tempo em duas frentes diferentes, e tentará mantê-las o mais afastadas possível: de um lado, a vida com seus amigos, no basquete e com um desempenho propositalmente mediano na escola; de outro, a vida silenciosa dos livros que lê (toda a literatura americana, Coleridge, Shaw...) e das palavras que escrevinha em pequenos cadernos vermelhos. A economia desse sistema até então muito bem articulado é toda posta em crise quando dois acontecimentos singulares chegam à vida de Jamal: a) um bem-sucedido teste de inteligência chama a atenção de uma rica escola particular, que dará a ele uma bolsa se ele jogar basquete; b) numa incidental visita ao apartamento de um mito das redondezas ("o fantasma", quase uma "bruxa do 71"), um homem recluso que penetra na imaginação dos jovens locais, Jamal descobre um intelectual que se revelará mais tarde como sendo o escritor William Forrester, uma espécie de J.D. Salinger (as ressonâncias são claras) que escreveu sua obra-prima logo cedo e que logo depois abandonou a vida pública e a literatura.

Do encontro abrupto com essas duas realidades diferentes, a vida de Jamal será toda reposta em questão. O basquete, posição social a que aspiram os diretores de sua escola, é para Jamal uma paixão, mas sua verdadeira aventura no filme será a da literatura, através dos contínuos diálogos com Forrester, que aos poucos vai se tornando mestre de letras e de vida do aprendiz de escritor. A partir daí, o filme chega a um momento óbvio, preferindo o embate professor da escola X professor da vida. Mas a câmera de Gus Van Sant é esperta o suficiente para driblar os lugares-comuns roteirísticos pela escolha de modos de filmar inusitados. Em alguns momentos, a câmera entrega-se à magia do basquete; em outros, à multidão que invade o Madison Square Garden para assistir a um jogo dos Knicks. A elegância da direção de Van Sant carrega o filme, atribuindo-se liberdades que não são comuns no cinema americano, mesmo o independente: luz da janela estourada em quarto escurecido, tons predominantemente escuros, movimentos de câmera bizarros e contudo discretos (algumas vezes a câmera roda tranqüilamente para 90 ou 180º), e inclusive momentos em que a iluminação respeita menos uma beleza da luz do que sua verdade, menos a luz como efeito de perfumaria do que uma poesia direta da luz. No som, a escolha também é certeira, discreta e inusitada, apostando nos momentos calmos das músicas de Miles Davis circa 69, comedidas no andamento mas de uma ousadia ímpar no timbre e na duração de cada nota.

Encontrando Forrester transcorre com mais elegância do que com novidade, e todos os chavões de personagem em processo de crescimento aparecem no filme. O momento de crise, o inconformismo, a paixão súbita (por Anna Paquin, filha de milionário que se encanta por Jamal), o conflito entre os antigos amigos... Definitivamente pertence ao gênero do romance de formação, mas Encontrando Forrester é acima de tudo o relato de uma amizade florescente entre dois mundos absolutamente estranhos, que vivem num mesmo prédio, num mesmo Bronx; dois ermitões, um que se esconde do mundo e outro que se esconde de si mesmo. Sempre quando vai nesse caminho, Van Sant acerta; quando prefere filmar a afirmação do jovem Jamal no colégio, nem sempre vai bem, sendo que a cena mais importante do filme (quando Forrester vai em pessoa garantir a inscrição de seu jovem amigo num concurso literário) é incrivelmente exagerada e boba, auto-indulgente como o filme todo soube evitar ser. Gus Van Sant acaba não tendo a mesma sorte de Jamal Wallace: à medida que vai aperfeiçoando-se nos meandros da literatura, Jamal nunca deixa de treinar o basquete, porque sabe que é esse seu suíngue, é esse seu vínculo com seu mundo real; já o diretor do filme esquece o jogo de cintura logo no momento mais importante. Mas Encontrando Forrester é muito mais do que isso, e um epílogo, no ano seguinte, consegue dar novo interesse à história, com um Jamal já respeitado por seus colegas, por seus professores, e tornado herdeiro literário de seu amigo Forrester. Nasce um escritor. E Van Sant, mesmo com todas as atribulações de percurso, consegue filmá-lo com o cuidado necessário.

Ruy Gardnier