As
Feras,
de Walter Hugo Khouri
As
Feras, Brasil, 1994-2001
Para falar de As feras, antes de mais nada, eu precisaria fazer
uma pequena crônica de como foi complicado ver este filme. Depois
de ficar guardado nas prateleiras por cinco anos, por conta das confusões
do nosso mercado exibidor e, principalmente, por conta das confusões
causadas pelos próprios produtores, o filme estreou numa única
sala no Rio de Janeiro e ficou em cartaz ao longo de uma semana. E para
ver o filme tinha que ir para um shopping center que fica na ponta da
Barra da Tijuca, a mais ou menos uma hora de viagem de carro da minha
casa, de ônibus seriam quase duas horas. Cheguei uns três
minutos atrasados e, bem, o cinema ia reapresentar o filme em seguida,
mas as gentis normas do cinema UCI não permitem que o espectador
veja os minutos que perdeu, enfim, não vi a abertura do filme.
Muitas coisas chamam
a atenção, os problemas do filme são muitos, e ao
mesmo tempo a discussão é pesada, triste... Khouri passou
décadas filmando belas mulheres em filmes carregados de uma amargura
tremenda, as mulheres eram exibidas como se quem as mostrasse estivesse
pensando algo como "isso não basta, isso não basta...",
e agora o discurso muda pra "nem isso temos mais, nem isso mais...", crepúsculo
do macho é aquilo ali. E é incrivelmente corajoso um senhor
da idade do Khouri fazer um filme desses, com um protagonista coroa vidrado
por mulheres encarando o fato de que elas não precisam dele. O
discurso de alguém que se sente dispensável.
O filme parece ao
mesmo tempo misógino e deslumbrado pelas mulheres, uma espécie
de O homem que amava as mulheres com tendência maníaco-depressiva,
o que fica claro nas duas figuras masculinas, o Nuno Leal Maia sendo o
típico protagonista do Khouri (dessa vez se chama Paulo) e o Luís
Maçãs fazendo um ator que se confunde com seu papel na peça
que está sendo ensaiada ao longo do filme, ele faz Jack, o estripador,
na peça "Lulu", que conta a velha história da "A caixa de
Pandora".
O problema mais evidente
do filme me parece a atuação da Cláudia Liz, quando
ela falava. Os diálogos são bons, e o Khouri parece ter
confiado demais naquela velha fama de bom diretor de atrizes, mas aí
pretendeu demais, infelizmente o anti-naturalismo de Cláudia não
convence, embora ela impressione com seus olhares e sua sensualidade.
Ainda há alguns problemas que podem incomodar um espectador mais
rigoroso e impaciente, como certos detalhes na fotografia ou alguns exageros
dramáticos, comuns em tramas fabulescas mas incômodo para
os acostumados unicamente com a narrativa naturalista tradicional.
No entanto, o filme
supera os problemas com seu vigor dramático. É comum em
textos críticos lembrar que nos filmes do Khouri ele se retrata
no protagonista, mas isso é muito limitado, pois afinal em vários
de seus filmes, mais claramente em As Amorosas, embora o protagonista
tenha estreita ligação com o universo pessoal do autor,
a gente pode perceber um julgamento ético nada favorável
ao personagem. Nesse, quem é julgado é o espelho do Nuno,
o Jack, mas o protagonista é tremendamente amedrontado, um marmanjo
decadente traumatizado.
Mas, retomando a interpretação
do filme como um discurso de alguém que se sente dispensável,
Khouri cria de novo um jogo de espelhos, em que ele tematiza a própria
tentativa de estabelecer um contato com o público de um jeito que
a este parece apelativo e desagradável. O desencanto de se sentir
não mais necessário é um medo de não ser mais
reprodutor, mas também de não ser mais produtor. O público
de cinema se sente mal com a gratuidade do nu, com o apelo óbvio
da beleza que o diretor usa para motivar a discussão. O homem artista
tem a coragem de se confessar com medo de não ser necessário,
pior, não ser querido, pior ainda, ser visto como desagradável.
Khouri parece descobrir desconfortavelmente que o público de cinema
mudou muito nos últimos trinta anos e, assim como as suas personagens
mulheres, não é possível ter certezas sobre o que
o público quer, o que ele deseja. A platéia parece ser tão
instável e temperamental quanto suas personagens. A reação
do autor é incômoda e discutível, mas demonstra uma
sinceridade emocional incrivelmente corajosa.
Daniel Caetano
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