Estorvo,
de Ruy Guerra
Estorvo, Brasil/Portugal/Cuba,
2000
Jorge
Perugorría em Estorvo de Ruy Guerra
Comecemos pelo mais básico: Estorvo
é, antes de tudo, um filme necessário. E as razões
são inúmeras. A mais reconhecida é a mais óbvia:
seu radicalismo formal e narrativo, sua história que gira em torno
de nada de prático, de nenhum "plot" específico,
sua arbitrariedade enquanto produto de autor, que pode seguir o caminho
que desejar e ser finalizado em qualquer momento. Mas, este está
longe de ser o grande ponto de interesse do filme (me resumirei a falar
do filme por não ter lido o romance que o inspirou). O que vem
por trás desta aparência, desta estética é
que realmente interessa. O porquê. E aí sim, pode-se falar
ainda mais de um filme necessário, urgente. Um filme sobre a perda
(ou até a ausência já inicial) da identidade, sobre
a solidão urbana, sobre a falta de parâmetros e controle
do homem sobre seu próprio caminho, sobre ser empurrado adiante,
"não entrando em lugar nenhum, mas saindo de todos os outros".
A forma como Ruy Guerra concebe este mergulho
é que dá verdadeira sustância às suas concepções.
A começar, lógico, pelo uso da fotografia. De contrastes
extremos, efeitos óticos, câmera na mão. Um esteticismo
não vazio, mas cheio de significado. Que busca a convergência
de olhar com um homem que perdeu completamente a capacidade de se ver
em si mesmo, nos outros, no mundo. E que por isso mesmo ascende lentamente
ao nível da loucura, onde "posso estar vendo coisas, posso
estar vendo as coisas mais nítidas do que são". É
mais que interessante, é necessário pensar na visão
de quem se está colocando esta câmera. Sim, pois se ela acompanha
o personagem na sua viagem pelas margens da loucura, ela não o
faz em câmera subjetiva, mas sim numa câmera grudada no personagem.
Isso significa que aquele olhar quebrado não é só
o do personagem. A loucura e a perda da consciência não são
só dele. São nossas também, que estamos muito próximos
a ele, que vamos junto com ele. Ruy Guerra não exime o espectador
de seu papel de protagonista.
As formas encontradas para esta quebra de
consciência são as mais variadas possíveis, algumas
de grande originalidade, outras menos. Por exemplo, a idéia do
uso de cidades diferentes (Rio e Havana) construindo uma só geografia
urbana, é perfeita, uma sacada de gênio. Da mesma forma,
a questão do idioma (afinal, ainda hoje uma das maiores formas
de identificação), uma mistura estranha de português
e espanhol. Neste ponto, a presença de Jorge Perugorría
é perfeita, pois o seu português, mais do que o de um estrangeiro
parece o de alguém que desaprendeu a falar, que lentamente vai
redescobrindo sua voz e sua capacidade (ou não) de se expressar.
Nas ruas, ora se fala português, ora espanhol. Outro ponto importante
e absolutamente funcional são os vários níveis de
narração, todos em conflito. Temos as imagens propriamente
ditas, temos a narração em off, confusa, contraditória,
temos os intertítulos que comentam e completam e deixam vazios,
temos a voz do próprio Perugorría. Todas elas só
convergem no excepcional plano final, onde se completam, e onde a unificação
do discurso só vem com a morte.
Temos ainda a presença do flashback,
figura classicamente ligada à explicação, à
compreensão de motivos e antecedentes, mas que aqui apenas joga
pistas, confunde, duvida. O passado, o presente e o futuro adquirem o
mesmo estatuto, que é o do sonho, do pesadelo. A verdade não
parece estar em nenhum deles, aliás, não parece estar em
lugar algum. Os círculos concêntricos que a narrativa vai
tecendo giram numa velocidade entre o lento e o rapidíssimo, deixando
o espectador sempre desconfortável. Até o momento em que
ele, como o personagem, sente a vontade de dizer um "Chega!"
e sumir na escuridão.
Uma coisa apenas incomoda, no mau sentido,
no filme: os personagens secundários e sua estranheza excessiva.
Sim, porque no meio de um filme que, como vimos, consegue pela câmera,
pela trilha sonora, pela narração, pela estrutura, pela
geografia física e idiomática, jogar o espectador num mundo
novo e estranho a ele, caracterizar os personagens com clichês de
um freak show, parece mais do que over, desnecessário.
Com isso, eles perdem força, pois de tão estranhos viram
clichê, e para o espectador, o filme perde parte de seu radicalismo
ao virar apenas uma "loucura", com a qual ele não se
identifica. Se olhamos para os personagens da irmã, da ex-mulher,
do louco do relógio, da mãe do amigo, das crianças,
em suma, todos aqueles que são retratados de forma mais naturalista,
estes são os mais fascinantes. Pois eles já são estranhos
e intocáveis por tudo que cerca o filme. Vê-los, normais
como são, dentro do fluxo de consciência e da forma com que
Guerra os filma, é que cria a verdadeira estranheza. Ver o "normal"
com os olhos novos. Ao contrário, os personagens efetivamente bizarros
como a amiga da irmã, o marido dela, os criminosos do sítio,
o delegado, em suma, todos caracterizados pelos atores e figurinos e maquiagem
como "estranhos" tiram força do filme. Ao invés
de incomodar, eles se tornam anedóticos, engraçados. Porque
achá-los estranhos é óbvio, então não
há surpresa nenhuma nisso, e o espectador se sente protegido pois,
realmente, é impossível se sentir normal em volta deles.
Me parece que muito melhor seria subverter todos os aspectos formais (como
ele faz) e deixar os personagens no tom do naturalismo, confiando mais
que a estranheza maior é a menos óbvia. Num filme como este,
que já pede tanto do espectador, não dar a ele este último
voto de confiança chega a ser contraditório.
Mas, se esta atração pelo "bizarro"
tira parte do alcance do filme, não desvalida de forma nenhuma
todos os seus aspectos absolutamente positivos, inovadores, e mais do
que tudo, como dissemos no início, necessários, num cinema
brasileiro (e mundial) muitíssimo preguiçoso e covarde.
Eduardo Valente
|
|