Paralelas e Transversais
Bilhete Premiado, de Nora Ephron
Prova de Vida, de Taylor Hackford


Lucky Numbers, EUA, 2000
Proof Of Life, EUA, 2000

O Resgate da saudosa Ryan

Ao mesmo tempo na cidade chegam os filmes de Meg Ryan e de Nora Ephron. Sim, os filmes. Dessa vez, as duas não se juntaram para fazer mais uma comédia romântica da temporada. Realizam, sim, separadas, dois filmes que pouco ou nada têm a ver com elas. A doce Ryan caiu de quatro por Russell Crowe e decidiu fazer com ele Prova de Vida, filme sério de ressonâncias políticas, enquanto a outra parte da conjunção feminina decidiu fazer uma comédia sobre losers, Bilhete Premiado, onde dois apresentadores de televisão tentam passar a perna na loteria federal e faturar milhões. Pode-se (e deve-se) duvidar de todo tipo de frase feita, mas no caso o "a união faz a força" certamente valeria para a dupla dinâmica da comédia água-com-açúcar americana: separadas, fizeram dois fragorosos abacaxis. E dos piores.

Das duas, sabe-se mais ou menos o que esperar: da doce Meg Ryan um olhar terno, acridoce, sempre em busca de um amor aparentemente irrealizável porque de sonhos; de Nora Ephron uma sofisticação um pouco blasé egressa dos melhores filmes de Woody Allen (Manhattan e Annie Hall, especificamente). Juntas, as duas têm um certo charme, que fazia dos filmes em que trabalhavam obras graciosas, mesmo que um tanto bobas. Separadas e fora do contexto em que sabem trabalhar, fazem dois filmes absolutamente desprovidos de interesse. Ephron pega para produzir e dirigir um filme de humor tolo e, em muitos momentos, de "mau gosto". Se há diretores especializados em extrair algum prazer subversivo no mau gosto (irmãos Farrelly, John Waters), Nora Ephron não é da turma deles. Ao lado da grossura dos personagens de John Travolta, Lisa Kudrow (da série "Friends"), Ed O'Neill (o indefectível Al Bundy da série "Um Amor de Família") e Tim Roth, Ephron acrescenta uma trilha sonora cool que afronta todo o projeto do filme. Mas pior que isso, talvez, seja a falta de carisma de qualquer um dos personagens, liderados por um Travolta absolutamente inexpressivo. E, pior ainda, um roteiro que dá milhões de voltas e nunca sai do mesmo lugar: o óbvio.

Prova de Vida é um abacaxi de outra classe. É um filme "sério". Isso quer dizer: pretensamente sério, porque envolve temas importantes e uma intriga militar/política sobre terrorismo na América do Sul, sobre o valor de uma vida humana, sobre a transcendência do humanismo e sua superioridade em relação ao comércio capitalista, etc. E como todo filme "sério" hollywoodiano, Prova de Vida fala muito, mesmo sem o saber, sobre como a América (como eles adoram se chamar) pensa, e esse filme mostra como o senso comum estadunidense vê o resto do mundo, sobretudo o terceiro mundo: um aeroporto barulhento, em que zilhões de cholos malnutridos gritam a brandem placas na vã tentativa de encontrar alguém. Sim, os nativos são separados dos americanos por grades. Sem metáfora. O filme é tão preconceituoso que teve que inventar um país fictício, Tecala, onde poderia usar de licença poética (sic) sem causar problemas diplomáticos. E nesse país, nativos malvados raptam um empresário bondoso porque precisam de dinheiro para manter uma instituição terrorista outrora marxista e revolucionária (as palavras são usadas no filme); sua esposa, bondosa trabalhadora em ong's de assistência (Meg Ryan), desespera-se e encontra refúgio na ajuda de um bambambam do assunto (Russell Crowe), mas que logo é dispensado porque a empresa do empresário raptado não vai pagar o seguro; as autoridades locais são o cúmulo da ineficiência e da corrupção; movido por motivos morais e por uma paixão lancinante que jamais é explicada, o bambambam volta para salvar o marido, à la Casablanca, recebendo da graciosa Meg apenas um beijo e declarações de eterna dívida. Dirigido com uma nulidade incrível por Taylor Hackford, Prova de Vida só levará às telas pessoas movidas pelas fofocas de bastidores que envolveram Ryan e Crowe nos últimos meses. Patético.

Ruy Gardnier