O Olhar da Inocência,
de Jean Becker


Les enfants du marais, França, 1999

Existe algo de efetivamente anacrônico neste filme de Becker. No seu desejo de dialogar com o mais clássico formato narrativo, ele compõe um filme que ao longo de sua duração não apresentará surpresas nem reviravoltas: tão somente duas horas na vida de personagens em conflito com seu ambiente, com sua estrutura social, com suas odisséias de vida. No meio destes, um personagem que é quase um modelo de virtude, de comportamento, de idéias. Um autêntico herói, na melhor tradição do homem "sem nome" (embora este até o tenha), que surge um dia do nada, e está destinado a partir no final. O que surpreende é que consiga manter esta estrutura com grande interesse, até porque parece acreditar nela piamente. E acreditar em si mesmo é o que falta em tantos filmes hoje.

Pela sua estrutura que lembra uma fábula, o filme possui um certo contraponto ao longo das desventuras dos heróis que parece em desacordo constante com o que vemos, um ponto de desconforto. É a história em paralelo da passagem de um boxeador pela prisão (interpretado pelo jogador de futebol Eric Cantona!!), que está sempre num tom entre a violência e a paródia que parece estranho ao filme. Perto do final, porém, o filme revela a inteligência de sua urdidura, ao juntar as histórias em torno de uma conclusão ainda mais fabulesca do que podemos antecipar.

E concluímos que a adesão do diretor à noção de que é possível passarmos por cima de diferenças de classes pela simples compreensão, sem qualquer questão de lutas, é honesta e parte necessária para que compremos sua história. E se o fazemos, ele não deixa de possuir um domínio dos mais agradáveis do painel que tenta construir, ao final do qual também queremos crer na possibilidade de sermos todos "bons hommes". Cinemão no que esta expressão possui de mais típico, sem dúvida, mas de boa qualidade.

Eduardo Valente