Durval
Discos, de Anna Muylaert
Durval Discos, Brasil,
2002
Por qualquer ângulo
que se observe Durval Discos, estréia em longa-metragem
de Anna Muylaert, nota-se como encenação e personagens resistem
ao tempo. Esse é, na essência, seu tema. E também
a sua forma. Temos em primeiro plano um dono de loja de discos, o tal
Durval (Ary França), dedicado a vender apenas os antigos bolachões.
É um anacrônico. Tem alergia ao comércio de CDs e
mantém-se fiel às referências dos anos 70 (musicais,
cinematográficas e visuais). Ele não ficou para trás.
Criou um tempo paralelo, imune à ação das duas décadas.
Sua relação umbilical com a mãe (Etty Fraser), levada
com afeto e atritos, revela seu aprisionamento ao ninho. A casa onde moram
é um útero do qual ambos se protegem dos signos do mundo
exterior. O maior problema de Durval, por sinal, foi algo perdido com
o tempo: a receita de um doce esquecida pela mama.
Ato 1
Vemos o cotidiano de Durval. Em seu lar-loja parado no tempo, aberto à
raras intromissões de fora, acontece uma sucessão de eventos
banais: discussões com a mãe, conversas com clientes, paquera
com a vizinha. Sentimos uma pasmaceira cheia de harmonia. Nos pequenos
gestos, nota-se o calor da vida. Também se antevê o início
de um conflito que pode pôr fim à ordem do lugar. Durval
percebe que, idosa e cansada, a mãe precisa de auxílio.
Ela resiste. Não quer uma empregada doméstica, pois, dessa
forma, passa a não ter mais utilidade. Ele insiste. Inicia-se o
ritual de entrevistas com candidatas. Pagam pouco, quase nada.
Corta!
Ato 2
A contratação de uma empregada doméstica (Letícia
Sabatella), aparentemente um anjo, destruirá a tela protetora a
manter o equilíbrio da casa. Ela introduz o caos externo no ambiente
doméstico por meio de uma criança largada por lá.
Essa nova personagem, a princípio, tem ares de renovação.
Na verdade, é uma ruptura. Eles terão de cortar as amarras
com o tempo congelado e com a realidade paralela para se adequar à
nova circunstância.
Corta!
Ato 3
A mãe não tolera o risco da perda do filho, simbolicamente
falando, e tenta colocar a menina em seu lugar. Por sua vez, Durval tenta,
atabalhoadamente, sair da casca. O filme muda de registro. Chega próximo
do delírio para mostrar a completa incapacidade dos personagens
em manter controle sobre transformações e imprevistos.
Corta!
Anna Muylaert filma
sua fabulação urbana-doméstica em fina sintonia com
seu tema. Seus planos procuram reproduzir, pela duração,
a tentativa dos personagens de parar o tempo. Temos aqui um interessante
contraste. Porque o refúgio no passado e a proteção
contra a realidade toma outra proporção em um cidade, São
Paulo, onde tuda muda o tempo inteiro e apaga marcas do passado com velocidade.
Bastam duas ou três seqüências externas, incluído
o plano inicial e o final, para se ter esse choque em evidência.
O primeiro ato, assim, comumente definido como o "normal", na
verdade é surrealista. Idílico pelo menos. Normal seria,
pela desordem do ambiente onde a ação se inscreve, o ato
delirante. É o abrir dos olhos dos personagens para o tempo e o
lugar onde vivem.
Ao optar por uma narrativa
de tomadas extensas e lentos movimentos de câmera, Anna Muyalaert
filia-se esteticamente ao anacronismo de mãe e filho por negar
as narrativas aceleradas, estruturadas com estilhaços visuais e
giros alucinantes de câmera. Ela substitui a forma em movimento
de montanha-russa pela preservação da vida na imagem com
a cadência de um carossel. Sua cenografia pulsa sem chamar atenção
para si. Faz móveis e cômodos, enfim a casa, soarem verdadeiros
na representação. A mise-en-scène também evita
concorrer com os personagens para sobretudo servi-los. O mini-elenco,
portanto, é valorizado. Poucos filmes recentes, brasileiros ou
não, foram tão generosos com os atores.
Há quem acuse
a diretora de ter fetiche pelo plano-sequência. Muitas passagens
não pediriam, necessariamente, essa maneira de filmar sem cortes.
Talvez seja o caso de substituir o termo fetiche por resistência
estética. Com a tendência de se picotar os blocos narrativos
em planos curtos, com encadeamento estroboscópico, as imagens tendem
a se tornar signos sem significação. Em vez de comunicar,
a informação visual omite. Durval Discos caminha,
não sem riscos, em direção oposta. Estica tanto alguns
planos, para poder transmitir sem pressa todas as informações
visuais ali contidas, que quase os esteriliza. O estranhamento provocado
nessas situações talvez esteja menos na opção
e mais no condicionamento de nosso olhar aos andamentos com pé
no acelerador. Anna Muylaert restitui, por assim dizer, a verdade da imagem.
A sua verdade, de sua imagem.
Cléber Eduardo
|
|