Xuxa
e os Duendes 2,
de Paulo Sérgio Almeida e Rogério Gomes
Brasil,
2002
Filmes deveriam ser sempre levados a sério quando analisados. Não
importa se uma obra densa de Carl Dreyer ou um produto ralo de Nora Ephron.
O cinema é construído a partir de signos que, ordenados
em uma linguagem, geram uma série de significações.
Ao se exercitar a crítica, portanto, é preciso levantar
questões. Seja com vinho francês, seja com Coca-Cola. Não
se pode aceitar como texto crítico um amontoado de palavras que,
sentado nos adjetivos despidos de argumentação, deixe de
especular sobre os sentidos do "objeto" criticado e, consequentemente,
não avalie as opções técnico-dramáticas
da expressão cinematográfica. Empregando ou não o
humor na construção retórica, sem cair nas facilidades
da resenha-piada, que jogam para a torcida sem jamais entrar no jogo do
cinema, é preciso destrinchar as imagens, não apenas olhá-las
para depois descrevê-las com postura sentenciosa.
Essa introdução
aparentemente disparatada serve apenas para explicar a razão pela
qual o artigo em andamento recusa-se a reproduzir a tendência de
apenas martelar as produções estreladas pela tal rainha
dos baixinhos. É preciso expor os pregos usados nas marteladas
e evitar a tentação de malhar o filme por conta da protagonista.
Jornalistas e intelectuais tendem a ver na imagem-símbolo de Xuxa
a síntese da degradação educacional e cultural das
crianças brasileiras. Sem deixar de esbarrar nessa questão
um tanto redutora, pois Duendes 2, em última instância,
é sobre Xuxa, esse texto não tem objetivo de julgar, digamos,
os efeitos da apresentadora na formação dos pequeninos.
Deixemos essa tarefa para outra oportunidade e para quem esteja mais sintonizado
com esse fenômeno midiático. Fiquemos, no momento, no específico.
Voltemos um ano atrás.
Duendes é uma fábula esotérica vista por 2,7
milhões de espectadores. Colheu dinheiro na bilheteria e gerou
apetrechos licenciados. Seu discurso, de certa forma, era autocrítico.
Na verdade, demagôgo. Xuxa alertava as crianças e os adultos
para a necessidade de se pensar menos no dim-dim e mais no crescimento
espiritual. Parte dessa evolução do espírito, presume-se,
era pagar para ver o filme e, se sobrasse troco, comprar algo da marca
Duende. Uma exploração da fé pop. Dízimo para
as criaturas reverenciadas pela estrela. Sabe-se que Xuxa, conforme diz,
vê ou viu duendes. No filme, virou um deles, a duende da luz. Falava
com plantas, vestia-se como hippie, tinha um brilho no olhar. O brilho
dos que crêem.
Duendes 2 traz
a mesma personagem, mas o discurso mudou e, embora isso não seja
ponto a favor do filme, essa mudança o tornou mais coerente com
a prática. Vejamos: a loira enfrenta bruxas decididas a fazer uma
poção maligna com lágrimas de crianças cheias
de virtudes. No meio da missão, envolve-se com um professor de
inglês, Luciano Zackir, ex-marido da estrela, que não crê
em duendes. Chegamos ao x da questão. O filme propõe um
duelo romântico-filosófico entre esoterismo e conhecimento.
Xuxa tenta convencer seu candidato a namorado a não ficar tão
preso ao racionalismo e à sua bagagem cultural. Ele precisa se
infantilizar para crer nos duendes. Despir-se do conhecimento para abrir-se
para a sensibilidade. Para educar a percepção, é
preciso ser ignorante, conclui-se.
A comparação
com outros dois infantis brasileiros talvez seja elucidativa. A pedagogia
cinematográfica da apresentadora é oposta a de O Castelo
Rá-Tim Bum, de Cao Hamburguer, e A Reunião dos Demônios,
de Cecílio Neto, ambos trabalhos centrados na questão do
aprendizado. São histórias sobre crianças que assimilam
algo sobre o sentido da vida ou sobre a falta dele. Amadurecem a partir
da vivência e da responsabilidade adquirida. O conhecimento, seja
pela experiência direta, seja pelo transmitido, leva ao crescimento.
Há outros xis
nessa questão. O da tolerância, por exemplo. Nesse caso,
tolerar é aceitar o inferior, não o diferente. Para a protagonista,
Szafir é o "outro". Um ser humano. Para sua concepção
de duende, uma espécie inferior e de espírito curto. Pois
a heroína é capaz até de voar. Está em um
plano superior (literalmente): nas alturas. Os consumidores do universo
de celebridades ficarão tentados a ver um acerto de contas pós-conjugal
via ficção (nessa superioridade de Xuxa em relação
Szafir), como Orson Welles fez com Rita Hayworth em Dama de Shanghai,
mas esse é assunto para revistas de celebridades e em nada ajuda
a colocar um holofote sobre as sombras. Ou melhor, sobre a luz. Porque
a protagonista é, no filme, o antídoto contra as trevas.
Ela combate vilãs que agridem olhos infantis. Impossível
não ver a metáfora. Xuxa seria a responsável pela
puruficação do olhar das crianças. Uma reação
à degradação consumida por seu público alvo.
Uma educadora visual do bem. Sua principal lição: "comam
biscoito da marca y", mensagem expressa em propaganda com ares de
aula.
Tecnicamente, não
há refresco. A opção pelo digital na captação
das imagens resulta em atores pálidos e anêmicos ou com aquela
tonalidade de quem passou por algum curto-circuito na capsula de bronzeamento.
Vera Fisher está com a cor de Zezé Motta e Zezé Motta
surge com aqueles olhos de vampiros de novela da Globo A granulação
no fundo dos planos também fere a vista tanto pela ausência
de propósito como pela falta de cuidados. Ou haveria na definição
das imagens alguma procedência não percebida? Talvez. Também
chama atenção a mão pesada no controle da direção
e no ritmo estabelecido pela montagem. Para um filme infantil, Duendes
2 é um bocejo. É como se o freio de mão estivesse
puxado ou o filme não engatasse a segunda.
À sensação
de modorrência adicione-se os ruídos vocais de Debora Secco
e Guilherme Karan. Eles parecem competir para ver quem atua com mais decibéis.
Gritam, esguelam-se, berram. Maltratam suas laringes e ferem nossos tímpanos.
Para compensar esses deslizes, a equipe de criação busca,
de modo mal ajambrado, vincular-se à tradição das
chanchadas clássicas e dos Trapalhões: incorpora referências
paródicas a King Kong e Guerra Nas Estrelas. Em uma
só tacada, Xuxa vira Jessica Lange e Carrie Fisher, sem deixar
de ser duende.
Uma monstruosidade,
sob qualquer ângulo (dramático, visual, cultural, sonoro),
travestida de produto inofensivo. E ainda culpa as bruxas por ferir os
olhos das crianças.
Cléber Eduardo
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