O Apanhador de Sonhos,
de Lawrence Kasdan

Dreamcatcher, EUA, 2003


Um dos maiores esforços do crítico é sempre que seu trabalho seja o máximo possível "sobre o objeto de seu estudo", e o mínimo "sobre si mesmo". Ou seja: ele tenta (pelo menos na maioria das vezes) disfarçar ao máximo o extremo subjetivismo de seus julgamentos de valor por trás de algumas noções de método e observações em que a obra pareça referendar sem maiores sombras de dúvida as suas impressões. Por isso, é um desafio enorme quando o crítico se vê frente a frente com um trabalho como este O Apanhador de Sonhos, onde o máximo que ele consegue elaborar num primeiro momento é: "afinal, que catso de filme é este???" (e o pior: num segundo e num terceiro momento também...).

Vejam bem: pelo menos pelos critérios que costumam reger este crítico aqui, trata-se de pergunta das mais valiosas. Porque o regime atual (principalmente o hollywoodiano) de produtos cinematográficos tem levado justamente a uma extrema "formularização", onde a previsibilidade e a obviedade tornam-se os pecados que mais comumente assolam os filmes. Por isso assistir a este filme é quase um bálsamo, porque pode-se dizer sem medo que a cada sequência que bate na tela o espectador entende menos que filme o diretor quer fazer, e muito menos ainda o que virá depois. Não só o registro muda constantemente como o foco de atenção do filme, o que cria uma tal mistura de gêneros na cabeça do espectador que rapidamente ele se sente órfão de qualquer conexão com o filme que o ligue a uma noção de "chão", de base para entender a história.

Afinal, o que começa como um thriller sobrenatural vai adquirindo inesperados tons cômicos, até que se torna um filme de horror de inspiração trash, depois com tons de um mega-filme de ação (com direito a intervenção do exército), para no terço final misturar tudo isso em cada uma de suas sequências. O filme, de fato, parece um pout-pourri de temas dos livros de Stephen King (em cujo trabalho se baseia), o que pode, se pensamos que King já deu origem a trabalhos que vão de A Hora da Zona Morta a O Iluminado, passando por Conta Comigo ou Louca Obsessão e chegam a Um Sonho de Liberdade, mostra que tipos de variações de tom podemos ter. É como se a esquizofrenia criativa que dá origem a uma obra com tais mudanças de tom tivesse sido comprimida numa mesma história.

A surpresa se torna ainda maior quando sabemos quem é o diretor do filme: Lawrence Kasdan (também co-roteirista, com o já duas vezes vencedor do Oscar William Goldman). Kasdan, se não um nome exatamente de destaque, é um artesão competente mais conhecido por incursões francamente dramáticas como O Reencontro, Turista Acidental e Grand Canyon ou reflexões sobre gêneros do cinema como Corpos Ardentes e Wyatt Earp. De uma forma ou de outra, tanto ele quanto Goldman possuem credenciais que afastam quase completamente duas possibilidades: a de contratados completamente desinteressados pelo lixo que realizam, ou a da completa falta de controle sobre o filme (duas hipóteses que o filme parece permitir que se levantem em alguns pontos diferentes).

Afastadas essas hipóteses, fica mesmo é a impressão de um realizador que se diverte muito ao emular alguns gêneros de cinema (como fizera em Silverado com o western), e que se leva muito pouco a sério. Esta característica acaba sendo a maior qualidade do filme, e também a que o torna mais intrigante. Porque, se ele possui a sensação de um filme que brinca com a possibilidade de ser ridículo (como os recentes O Núcleo, Malditas Aranhas ou Evolução), ele também parece voltar constantemente a algumas situações (se pensamos especialmente no seu início ou nos flashbacks) onde há um desejo real de causar medo, suspense ou mistério. Assim, não seria tanto a filiação a um humor auto-irônico a causa do seu estranhamento, e sim as idas e vindas entre este registro e um mais sério e direto, nunca se assumindo em apenas uma chave. E certamente esta é a grande sacada do filme: nunca dar ao espectador a resposta para uma leitura, mantendo-o constantemente incomodado. Esta opção (cujos efeitos podem ser sentidos na platéia ao ver o filme) é, de fato, absolutamente corajosa, não só da parte do cineasta como do estúdio (sempre tão obcecado com um "gênero" onde encaixar os filmes). Não há um minuto de conforto fruitivo ao se assistir O Apanhador de Sonhos.

Mas, se não há conforto, não é porque não haja fruição. Esta parte desde o talento de Kasdan em criar suspense e fascinação verdadeiros nas primeiras sequências ao trabalho claramente despudorado do elenco (indo das sobrancelhas de Morgan Freeman às gírias ridículas e constantes de Jason Lee, passando por um alucinado Damian Lewis interpretando uma dupla personalidade como não se via desde Steve Martin em Um Espírito Baixou em Mim). E que desemboca numa ironia capaz tanto de ter um monstro alienígena como vilão que atende pelo nome de Mister Gray, quanto de colocar o exército em cena como uma ridícula infantaria hipermilitarizada que não consegue resolver absolutamente nada (onde o personagem de Freeman em especial parece uma deliciosa brincadeira com o Kurtz de Marlon Brando em Apocalypse Now). Ou ainda de criar suspense quando um personagem tenta prender o alienígena dentro de uma privada (sim, ele sai como um monte de merda de suas vítimas, ao contrário do caminho menos natural do nosso querido e clássico "Alien"), enquanto tenta pegar no chão do banheiro um palito para colocar na boca. Ou, finalmente, de ter toda uma "storyline" do filme se passando dentro de um arquivo gigante que seria a memória de um dos personagens.

Mas ironia nenhuma se iguala ao final do filme, onde se dá uma das mais inacreditáveis transformações de criaturas da história do cinema de qualquer gênero (horror ou comédia), e que serve de resumo de tudo que o filme tem de mais delicioso. Verdade seja dita: Kasdan consegue como poucos misturar uma das mais despudoradas diversões cinematográficas em muito tempo com uma capacidade incrível de retirar o espectador de suas zonas de conforto. E o fato é: embora eu ainda não tenha encontrado a resposta para aquela tal pergunta inicial sobre o filme (afinal, que catso é isso??), quanto mais eu penso nele mais eu vejo como é diferente de tudo que se tem feito, e quão divertido e refrescante soa: como um absolutamente despudorado coquetel do mais livre cinema que se pode conceber numa linha de produção como a hollywoodiana, servindo-se de suas convenções e rindo-se delas o tempo inteiro. Oferecendo tapas em todos, mas acima de tudo colocando a sua cara a tapa (como a recepção totalmente negativa, de forma quase ofensiva, por crítica e público, pode provar).

Eduardo Valente