Domésticas
O Filme,
de Nando Olival e Fernando Meirelles
Domésticas
O Filme, Brasil, 2001
Se um filme deve estar antes
de mais nada voltado para o seu público, e em uníssono com
ele, Domésticas é incriticável. Num país
onde o cinema é hoje diversão de poucos endinheirados, classe
A, trancados em multiplexes com tudo escrito em inglês em sua volta,
um filme que busca sucesso só pode (e deve!) falar a mesma linguagem,
a língua do patrão. Reforçar seus olhares, suas impressões
de mundo. Por isso, aqui está o casamento maravilhoso de público
e filme. É claro que existem aqueles que cismam em querer mais
do cinema. Bom, se você é um destes, Domésticas
talvez seja menos recompensador.
É claro que os diretores
podem dizer que este início de texto indica um preconceito do "crítico"
contra o cinema popular... Ora, vamos e venhamos, "cinema popular"
não é só uma coisa, e não é muito menos
isso aqui. Se defender de críticas desta forma seria apenas provar
sua ignorância. E isso já foi feito. Eu defendo sempre que
diretor de cinema não devia falar, nem dar entrevistas. Ele não
tem nada a dizer que seu filme não tenha dito por si só.
Muitas vezes é meio patético ver o discurso de um diretor,
porque você compara com o filme e ele acaba parecendo mais fraco
ainda do que era. Não importa tanto o que se quer dizer, mas sim
o que se disse. Os diretores são menos importantes que os filmes.
Mas, isso dito, é impossível não se compreender Domésticas
a partir de uma declaração de um de seus diretores.
Diz Fernando Meirelles: "O filme é isso: jogar luz num personagem
que está presente na nossa cultura. Todo mundo tem ou teve alguma
relação com esse personagem e a gente não ouve, não
fala ou finge que eles não existem. São pessoas invisíveis."
Depois de tamanha eloquência,
poderíamos simplesmente calar. Mas não, é preciso
falar. O discurso acima faz a imaginação correr imediatamente:
jantar na casa dos diretores. Antes da saborosa sobremesa, um levantar
de sobrancelhas: "Eu ouvi um barulho na cozinha!! Rapaz, acho que
tem alguém lá! Meu Deus!! Todos estes anos havia uma pessoa
habitando minha casa, e eu nunca vi nem ouvi! Precisamos fazer um filme
sobre isso!!!" Portanto, Domésticas é assim:
se você considera normal nunca ter ouvido sua empregada, ou se costuma
fingir que ela não existe, você vai adorar. Se, por outro
lado, você não acha isso tão normal, vai ter dificuldades.
Porque é com este olhar interessado de verdadeiros antropólogos
que os diretores se investem da missão de salvar este povo (como
se fosse uma tribo do interior do Mato Grosso) da invisibilidade, trazer
suas histórias para público.
Mas, é claro, como não
trata-se de um documentário, não são as histórias
"delas". São as mediações dos patrões
do que sejam suas histórias. Como eles nunca nem tinham ouvido
estas pessoas, dá para imaginar a qualidade da mediação.
Para começar, elas são todas burras, muito burras. Mas não
só burras de não terem capacidade do pensamento abstrato
não. Burras de falarem "shampoo de barbosa", por exemplo.
Ah, mas quem nunca presenciou uma cena histriônica destas? Claro,
todos nós. Mas, no filme, não existe uma cena que seja sem
um erro de português, sem um pleonasmo, uma demonstração
do humor involuntário do "povo". Deve ser o tal "cinema"
popular, porque a platéia de patrões se esbalda de rir.
São tão engraçadas estas domésticas... E são
filmadas com este olhar o tempo todo: são bichos raros e peculiares,
verdadeira espécie digna de um documentário do Discovery.
Agora, o documentário
não pode ser muito "realista" não, senão
fica ruim para os patrões da platéia e de trás das
câmeras. Por exemplo, as músicas que estas "domésticas"
cismam de ouvir hoje em dia (funks, axés, breganejos) não
são músicas "bonitas", dizem os diretores. Portanto,
vamos mostrar esta realidade, mas nem tanto né, senão fica
feio... O filme é popular, é claro, mas vamos dar uma melhoradinha
nestas músicas... Vamos pegar as canções bregas dos
anos 80, que afinal já viraram "cult", e além
de tudo criam piadinhas e tornam as domésticas ainda mais ridículas!!
Tira o Bonde do Tigrão, coloca o Sidney Magal. Ou seja, os patrões
não gostaram do que ouviram das suas "personagens invisíveis"...
Bom, tiramos a musiquinha ruim
delas. Mas, não sei, este visual destas cozinhas, destas favelas,
destes quarto de empregada... hmmm, isso não dá onda não.
Já sei, vamos fazer o seguinte: vamos jogar aqui uma direção
de arte cuidadosa, uma iluminação quase expressionista,
movimentos de câmera de primeiro mundo (UCI, lá vamos nós...),
algumas cenas em p/b, em suma, filmemos como se fosse um anúncio
do Lux Luxo, que tal. Aí, imaginem, elas ficam ainda mais ridículas.
Claro, se os críticos reclamarem a gente diz que "eles só
gostam de ver feiúra e sujeira no povo, enquanto nós vemos
que também há beleza no seu universo..." Mas sem aquelas
musiquinhas feias, vai... Este tratamento estético é um
artefato perfeito de dominação do conteúdo pela forma.
Os patrões filmam com qualidade de primeiro mundo suas ignorantes
que mal falam português...
Mas, claro, diriam eles, têm
o valor de "fazerem de protagonistas dramáticas as classes
mais pobres"... Protagonistas dramáticas uma ova! Nenhuma
das historinhas é tratada com respeito, com desenvolvimento narrativo,
com personagens, e sim com um alinhavamento de clichês que leve
à piada fácil. Cinema popular seria escolher uma história
dentre estas todas e desenvolvê-la com a mesma seriedade com que
se fosse um filme sobre uma empresária, ou pasmem, uma publicitária.
Mas não, as domésticas só podem existir no coletivo.
É preciso o olhar totalizante, disfarçado de comédia
de situação, quando situação mesmo não
há nenhuma. Porque não o filme "Donas de casa"??
E, pior, nem a coragem de assumirem
a comédia eles têm. Claro, há o componente de culpa
social. Precisamos colocar aqui umas ceninhas, bem esparsas de preferência,
de "comentário social". Um rap deslocado, uma filha que
foge, uma mãe perdida pela cidade. Mas, mãe perdida, isso
não é meio feio não? Sem problema, copiemos a estética
de Wong Kar-wai, que fica super bonito, simbólico, saca? "Cinema
popular"...
Mas, afinal, e os patrões?
Eles não entram em cena não? As personagens que definem
a classe retratada (afinal, só são "empregadas"
porque têm patrões) não têm influência
nem papel no drama de suas vidas? Só de longe... Claro, diriam,
este é um filme "todo dedicado ao povo". Uma ova. É
medo mesmo de não saber se filmar. De como contrapor o olhar do
empregado sobre o patrão. Mas fácil, escamoteá-lo.
Até aparece um cara, que contrata uma delas como prostituta. Mas
ele é um cara tão legal que oferece um whiskinho, quando
ela decide não fazer sexo, ele compreende. Ela se entrega, e depois,
com R$200 no bolso, pensa se deve se dedicar exclusivamente a este "gentleman".
"Ah, mas e no final, nos
créditos aparece uma empregada de verdade falando, dando um depoimento
contundente sobre os patrões!" Hein, aonde? Nos créditos
finais?? Bom, aí tudo bem. A gente coloca nessa parte que ninguém
vê mesmo, e mais, a gente corta no meio. Assim ela fica com cara
de boba, mas não é culpa nossa. É só para
não dizerem que não teve a "voz do povo"...
Em suma, Domésticas
é isso aí... É um filme mau, tio crítico?
Não, claro que não. Não se fazem mais "filmes
maus" hoje em dia. Vivemos os tempos do politicamente correto. Temos
certeza que o filme foi feito com bom coração e intenções
as mais nobres, de verdade. Só que se ele documenta uma classe
invisível e traz à tona toda uma realidade, não é
a das domésticas não. E sim a dos publicitários paulistas
fazendo filmes em 2001. Um mundinho bizarro e peculiar, invisível
mesmo, pelo menos para mim. Só acredita no contrário quem
acha que Cleópatra é um documento sobre o verdadeiro
antigo Egito.
Eduardo Valente
|
|