Dois Perdidos numa Noite Suja,
de José Joffily


Dois Perdidos Numa Noite Suja, Brasil, 2003

Pode-se achar que o que está em discussão em Dois Perdidos Numa Noite Suja é a dificuldade de adaptação em um outro país, com o desenraizamento cultural a que são submetidos os estrangeiros. Nesse sentido, Paco (Débora Falabella) se dá muito melhor que Tonho (Roberto Bomtempo). Sabe se virar numa América selvagem, mas também não abandona suas raízes, cantando hip-hop em português de subúrbio carioca. Tonho sofre com seu desenraizamento. Não se encontra em Nova York, como não se encontraria em lugar algum fora do Brasil. Foi no embalo do êxodo de Governador Valadares esquecendo-se de que sua forte ligação com a mãe e com o modo de vida brasileiro não iriam permitir que se adaptasse a um mundo que lhe é o tempo todo hostil. Sua força moral é insuficiente para o jogo de cintura necessário ao sucesso financeiro em outro país.

Mas não parece ser essa a principal preocupação do diretor, o que faz com que a escolha do lugar seja um mero artifício. Poderia ser Paris, Londres, Rio de Janeiro ou São Paulo. Com a opção por localizar a trama no exterior, alguns truques de roteiro puderam ser empregados, como o de Paco ensinando a pronúncia correta do inglês para Tonho. Ou a simples necessidade de se estabelecer uma cumplicidade entre os dois conterrâneos. Artifícios que não se justificam plenamente, a não ser que precisemos nos aliviar de um sentimento duvidoso de subdesenvolvimento (a condição é fato, o sentimento é circunstancial). O sonho distante de prosperidade nos EUA revelou-se uma utopia para os dois. Se não deram certo no Brasil, porque dariam em outro país? Nada mais atual do que o desencanto da classe média com carreiras internacionais, mas Joffily deixa esse desencanto na superfície, ao que parece intencionalmente.

A mudança do personagem de Paco do masculino para o feminino sugeria, por outro lado, que o filme fosse pelo perigoso viés da confusão sexual, descambando, voluntariamente ou não, para cenas de forte apelo cômico. Não é isso que acontece. Joffily não está interessado em discutir a emancipação feminina ou a sociedade machista. Nem em fazer rir com a característica híbrida da trama. Tonho conhece Paco sabendo de sua condição de mulher que tenta se passar por homem para ganhar a vida. Sabe, portanto, que tem como companhia uma mulher, bonita e sensual, mesmo que se esconda sob trejeitos de malandro adolescente. Cai, inevitavelmente, de amores por ela. Tem de aprender a lidar com o gênio da moça que ora o provoca e seduz, como na cena do gelo, uma bela cena, por sinal, ora o repele de uma maneira zombeteira ou violenta, em algumas seqüências menos felizes como a do alicate prendendo a mão.

Essa paixão que se desenvolve entre dois sobreviventes não foge à observação de Thomas Mann em "Tonio Kröger", a de que a pessoa que mais ama, sofre mais porque tem que lidar com a falta de reciprocidade na relação. Amor não se mede, mas o mais carente sempre se acha menos amado, ficando cego aos sinais de afeto da pessoa desejada. E Paco dá esses sinais, ainda que dissimuladamente. A riqueza de interpretação de Débora Falabella faz com que, mesmo em certas passagens onde o overacting não é evitado, prevaleça a dubiedade de seus sentimentos em relação a Tonho. Essa é a grande riqueza do filme.

Convém esquecer a peça original, de forte impacto intelectual à sua época. Joffily parte do texto de Plínio Marcos (o qual desvirtua sabiamente) para discutir a relação de dependência entre quem ama e o ser amado. O que era subentendido ganha profundidade. Para Tonho seria necessário libertar-se desse amor desigual, quase de mão única, para seguir vivendo. Amar estava sendo sua ruína. Incapaz de suportar a superioridade amoral de sua companheira, precisou humilhá-la para equilibrar a balança. E se despedir, porque não agüentava o fardo de sua personalidade hesitante em confronto à de Paco, ousada. O frouxo, aqui, teve sua redenção.

Sérgio Alpendre