Deus é Brasileiro,
de Carlos Diegues

Brasil, 2003


São tantas as camadas sobrepostas em Deus é Brasileiro, de Carlos Diegues, que é impossível abranger todas em uma análise. Empenhado em abarcar metas diversas e aparentemente inconciliáveis, o filme iguala o objetivo do trabalho anterior do diretor, Orfeu, mas o supera por conciliar sem tanta tensão suas múltiplas ambições. Na ambientação do mito grego em uma favela carioca, representação simbólica/artificial e visão objetiva/realista, como é habitual nas obras do autor, matavam a verdade dramática e a autenticidade estética. Tudo soava falso. As interpretações dos atores principais e alguns diálogos salientavam a sensação de sermos colocados diante de algo desajeitado em seu tom excessivamente posado e formal. Era como se a superprodução tivesse de sambar sobre tamancos, apertada em um vestido de gala e com a experiência de quem fez curso de dança por correspondência. Faltava molejo, cadência, ginga. Orfeu é um passista de cintura dura e sem samba no pé.

Diegues tem perseguido um projeto, quase sempre sem êxito, de filmar uma "antropoesia" popular. Sua obra tira um lambe-lambe interpretativo do Brasil, mas, em vez de seguir os passos de um realismo direto e documental, embrenha-se pela trilha do lirismo alegórico e didático. Seu retrato da realidade é compromissado com o entretenimento e o espetáculo, de modo a torná-lo agradável aos olhos de um público amplo. Deus é Brasileiro talvez seja o ponto mais alto desse complexo ideário cinematográfico. Diegues lança um olhar ao mesmo tempo sintético e panorâmico para um ângulo do país, estabelece uma fabulação metafórica sobre a criação artística, arrisca-se a cair no ridículo por traduzir esteticamente o hibridismo sociológico e obtém autonomia como ficção ao gosto do freguês.

A autonomia de Deus

É possível encarar o filme apenas como a historinha da humanização de Deus ao contato com as imperfeições de sua maior criação: o homem. A relação do criador com a criatura, do cultor da imperfeição com sua obra imperfeita, garante à narrativa tintas cômicas e poéticas. Deus chega à Terra, na foz do Rio São Francisco, nas Alagoas, à procura de um Santo. Quer tirar férias e, para isso, caça o substituto. Tendo como guia um borracheiro com vocação malandra, que dribla as dificuldades sem rigor ético, e seguido por uma pobre moça com sonhos de uma vida melhor, o Criador percorre belos cenários naturais e degradados cenários sociais em cidades do Pernambuco e de Tocantins. Diante da pobreza e dos contrastes, dos efeitos do progresso e das conseqüências do atraso, Ele lamenta a interferência humana em sua obra. Não aceita a capacidade destrutiva da espécie e repudia sua obsessão em cometer erros. Aprenderá a aceitar as imperfeições e os limites desses seres tão nocivos quanto solidários ao se dar conta de suas próprias imperfeições como inventor do mundo. Seu guia e sua seguidora também aprenderão que, em vez de ir atrás do mestre ou esperar algo dele, precisam construir seus próprios destinos com criatividade. Pode-se ver o filme apenas por esse viés. Há coerência nele. Há verdade. Há uma existência em si.

Diegues é um diretor que, embora sempre tenha muitas idéias a alimentar seus filmes, não se resolve na tela. Os méritos de suas imagens estão quase sempre fora delas. A fórmula e a bula costumam prevalecer sobre o remédio. Deus é Brasileiro está entre os raros momentos em que, sem abrir mão dos conceitos e das alegorias, a narrativa tem autonomia e existe nela própria. Não apenas por conta do bom desenvolvimento da historinha, baseada em conto de João Ubaldo Ribeiro (O Santo que não Acreditava em Deus), mas também pela orquestração das partes no todo. A colaboração de Sergio Mekler, o montador cujo nome está associado aos trabalhos da Conspiração Filmes, garante fluência e agilidade. Os atores suprem as necessidades humorísticas e emocionais. As paisagens estão em sintonia com a proposta, sem aquele apelo turístico e sem função dramática de Tieta. O repertório da trilha musical também é pertinente com o enfoque sobre a convivência entre o arcaico e o moderno nas regiões cobertas pela câmera. Alguns diálogos, porém, são "escolares". Ensinam ao espectador que filme estão vendo. Essa dissecação das intenções, que preenche os hiatos e entrega tudo mastigado, como na cena em que Deus/Antônio Fagundes explica a Taoca/Wagner Moura a letra cantada pelo Cordel do Fogo Encantado, baixa a altura do vôo, mas talvez seja coerente com a indisfarcável busca de uma vinculação popular.

Diegues seria um cineasta de interessantes conceitos, mas sem habilidade para fazê-los virar imagem. Sua "mensagem", às vezes, é por demais telegrafada. Em Deus é Brasileiro, porém, o cinema se impõe. Há pelo menos três momentos em que o cineasta iguala-se ao intelectual. A primeira delas é aquela em que, andando pela margem do São Francisco, Deus irrita-se com a maçaroca sonora. Retira as músicas da cena e as substitui pelo canto dos pássaros. Busca uma pureza onde ela não é mais possível. A seqüência é interrompida pela buzina estridente de um caminhão. O paraíso natural perde espaço para a tecnologia. Deus para o homem. Em outra passagem, o Criador faz sua seguidora, Madá (Paloma Duarte), levitar/ascender. Olha para ela como quem assimila a transcendência de uma figura tão mergulhada na mundanidade humana. É ela quem, ali, está em plano superior. Ele a admira em estado de graça. O mesmo encantamento volta a se repetir no momento em que, em uma festa regada a forró, o personagem dança com a moça uma valsa vienense. Desce do pedestal para se colocar no mesmo plano dela. Tudo isso sem uma palavra. E com força poética.

A identidade nacional de Deus

Não parece ser apenas um golpe de mercado escalar Antonio Fagundes como Deus. Sua aparência é a síntese física da feijoada étnica-racial brasileira. Pele de caboclo, um sutil toque afro, expressão ibérica, portanto, moura-árabe-européia, em porções equilibradas. Ele não é brasileiro só na aparência de seu ator, nem pelo desejo nacionalista do mito da terra abençoada, mas porque é tudo ao mesmo tempo e todos os tempos, à semelhança de como o cineasta vê o país pelo qual viaja. Estamos no território mítico de representação de brasilidade. Ser brasileiro não é uma síntese ou uma unidade, mas uma soma de componentes que, pela biografia da terra brasilis, com suas múltiplas fundações, assimila o de fora e torna-o de dentro, assim como funde tempos distintos no presente. Diegues não julga os aspectos negativos dessa hibridismo, como parecia fazer ao satanizar o progresso em Bye Bye Brasil, no qual um projeto romântico de país estava sendo ameaçado. Passaram-se mais de duas décadas e aquela visão não cabe mais aqui. O diretor limita-se a constatar uma situação sem também celebrá-la.

Seu Deus, porém, é resistente. Não gosta do que enxerga, pois, a rigor, enxerga-se no que está vendo (imperfeição, multiplicidade, incoerência, contraste). Ele resiste às conquistas da modernidade. Não sabe como mudar a estação de rádio, olha o computador como uma maldição, amaldiçoa o transporte mecânico e não suporta a poluição sonoro-musical. Em sua viagem pelo Brasil, vai lidar com esses elementos. Conhece uma terra onde o canto das lavadeiras convive com a programação das FMs e motoristas de caminhonetes incrementadas têm de fazer as necessidades orgânicas em fossas públicas. Também perceberá que, embora essa terra seja povoada por milhões de católicos e tenha no misticismo um dado significativo de sua identidade, tem um concorrente. É a TV. O veículo onipresente tem um ícone tão idolatrado quanto o Criador. No caso, uma deusa. Ela é a apresentadora infantil interpretada por Suzana Werner. Incapaz de competir com sua popularidade, Ele incorpora sua imagem para conseguir dinheiro do povo. Fé na telinha. A TV está ali como integradora cultural do país, talvez mais que a religião, e ele tem de usá-la para obter seus objetivos. No caso, uma esmola.

Se O Criador assimila a inviabilidade de manter a pureza de sua criação, o autor também constata a mesma coisa em relação a um ideal de país. Deus é Brasileiro é obra de uma olhar aberto para seu tempo. A tensão entre o global e local não existe e a identidade se remodela com agilidade. Em um determinado trecho, um homem simples, computador à frente, acessa um site espiritualista, capaz de comunicar-se com mortos. Todos estão na rede. Até quem não está aqui, ou seja, os tempos e elementos remotos. Mostra-se uma adição de componentes aos existentes e não uma eliminação do velho pelo novo. O Brasil moderno contamina até o mito celestial. Há aparelhos eletrônicos no céu onírico (telefone, secretária eletrônica, trem). Essa ao menos é a visão de Taoca, o ribeirinha que usa piercing, não vai à feira (mas ao shopping), ri da tradição dos tropeiros e veste uma camiseta sintomática, com a figura de um cactus e a frase "American is Classic". Seria esse nordestino um brasileiro "estrangeirado"? Não. É só um brasileiro. E atado aos estereótipos de sua região, como a malemolência preguiçosa e a capacidade de dar um jeitinho quando o bicho pega.

A brasilidade de Carlos Diegues está no acúmulo de elementos que são traduzidos cinematograficamente em linguagem poluída, impura, na qual o realismo convive com o artificialismo, o olhar antropológico com a poesia quase cafona, o enfoque distanciado com a emoção desbragada, a beleza de ambientes autênticos com a superfície fake de imagens em vídeo. Momentos fragmentados e a as aliterações cromáticas acentuam a fragmentação desse universo em constante mudança. O projeto nacional de cinema brasileiro é, para, o diretor a impossibilidade de projeto único. Busca-se a variedade interna e externa (do discurso fílmico e da realidade abordada). Se tudo nos é estranho", como dizia Paulo Emilio Salles Gomes, então tudo nos pertence. Não existiria o totalmente importado para um país onde se cria a partir de fora. Nada mais contemporâneo. Ernest Laclau vincula o conceito de sociedade moderna à pluralidade do centro de poder. Ela não têm princípio organizador e articulador únicos. Não é um todo unificado e delimitado com clareza, mas caracterizada por diferenças e antagonismos que, no tocante à sua identidade nacional, resulta em um símbolo fragmentado e multiforme. Deus é Brasileiro traduz isso em cinema.

Viva o Povo Brasileiro e a morte do Deus-Estado sebastianista

O Deus de Diegues é do Protestantismo. Dispensa um mediador oficial – a Igreja – na relação com o homem. Já os seres humanos estão na condição de "indivíduos soberanos", como no Humanismo Renascentista e no Iluminismo, pois é sujeito e vítima de sua prática. Em ambos os casos, o de Deus e o do homem, são seres modernos. Deus também não têm identidade própria e imutável. A formação de seu eu, mitológico, está na visão do outro. Para citar um conceito de Lacan, a partir de Freud, a identidade é preenchida a partir do exterior, de como imaginamos que nos enxergam e, incapaz de alcançar plenitude, está em constante alteração. Isso vale para Deus e para o Brasil. Porque a noção de uma nação, com cultura e identidade própria, também reside na imaginação. Muito do que se define, mitologicamente, como brasilidade ou brasileiro, na verdade, está em como queremos ser vistos e, ao contrário do que pregam muitos sociólogos, não em como realmente somos. Pois somos muitas coisas.

E quem é o povo brasileiro em Deus é Brasileiro? É um conjunto de indivíduos que, na luta pela sobrevivência, rouba e engana o próximo, pois não pode esperar nada cair do céu. Os pecados se acumulam. Há há até um padre fornicador, ausente da tela, mas presente nos diálogos. Não há nenhuma possibilidade de idealização e redenção. O próprio protagonista é vacinado contra paternalismos. Ele não promete felicidade, revolução ou dias melhores. É anti-messiânico, anti-sebastianista, um cético rabugento. O povo que se vire. Ele pretende no máximo fazer pequenas reformas, depois deixadas de lado quando decide, após seu aprendizado na Terra Brasil, a deixar os homens tocarem seus próprios caminhos. Dá de ombros para as desgraças sociais. Ninguém as resolverá em passe de mágica.

São Paulo também não é mais o utópico céu do progresso. O sonho de salvacionismo do nordestino e do sertanejo não está mais na maior capital do país. É preciso encontrar saídas alternativas, como fica claro no final, em vez de apostar na migração. Politicamente, de forma mais direta, Deus é o Estado. Procura um santo, um homem comum, para liderar o rebanho (a sociedade). Quer sair de cena. Ficar com o status, mas sem por mão na massa. Seu substituto, além de gago, portanto prejudicado na retórica, é um ateu. Não tem fé em ideologias. Apenas em ações. Vemos a morte de um projeto de coletividade conduzida por líderes e instituições. É o indivíduo e a organização deles, conclui-se, que deve arregaçar mangas. Estaria o cineasta comemorando a morte do Estado ou apenas de moldando à atualidade ao depositar fé no cidadão? Pelas muitas questões levantadas, algumas respondidas parcialmente, outras geradoras de um silêncio observador, Deus é Brasileiro é uma obra riquíssima. Nem sempre se resolve na tela, mas transborda compaixão, no melhor dos sentidos, pelos limites e pelos desacertos. Seu não julgamento não resulta em ausência de olhar crítico. Apenas relativiza essa crítica e a torna afirmativa.

Cléber Eduardo