Demolidor
- o Homem sem Medo,
de Mark Steven Johnson
Daredevil,
EUA, 2003
Não há surpresas (boas ou más) em Demolidor.
Impactada pela boa
recepção de X-Men (2000) e pelo fenômeno de
público de Homem-Aranha (2002), a grife de filmes de super-heróis
Marvel prenuncia, já em Demolidor, o esvaziamento criativo
que esse novo ciclo de produção maciça pode difundir
sobre suas personagens. Não há nada em Demolidor
que não cheire a uma tentativa mecânica de cristalização
de formato, ou a uma aposta simplista aos atrativos esquemáticos
que alcançaram o mega-sucesso sob a direção de Sam
Raimi:
Os travellings sobrevoando
Nova Iorque, as cenas de saltos acrobáticos, a trama centrada no
caso de amor entre herói e mocinha, tudo se apresenta como uma
simulação segundo escalão do circo de atrações
encenadas em Homem-Aranha. E tome saltos coreografados prá
cá, e tome lutas pelos ares prá lá, e tome gente
escalando paredes em fios de arame, e saltando entre vãos de prédios
como se planassem... Para além das características físicas
compartilhadas pelas personagens, a maneira de filmar imposta por Johnson
parece agravar a sensação de que tudo não passa de
uma imitação barata (com duplo sentido) da estética
de saltos e câmeras lentas popularizadas pelo sucesso de Matrix
e encaixadas com perfeição no universo do aracnídeo.
Não há sutilezas em Demolidor, só apelos.
Das riquíssimas
especificidades da figura de Murdok/Demolidor, apenas a cegueira física
é explorada com estardalhaço, numa resolução
que não consegue ser mais do que uma simplista representação
videográfica de seu sentido extra-humano (onde o computador é
a muleta para a falta de cinema). Fora o atrativo óbvio dos super-poderes,
a figura barroca do advogado/justiceiro criado por Stan Lee é totalmente
desperdiçada pela pinta bonachona/canastrona de Ben Afleck (galã
que, mesmo quando acerta, parece ainda estar devendo muito). A personalidade
de um dos únicos super-heróis assumidamente católicos
(e constituído a partir desse universo) é sub-aproveitada
por uma fotografia pouco inspirada e um roteiro que parece estar sempre
correndo contra o tempo.
O Demolidor
uniformizado até alcança uma certa dimensão fantasmagórica
(e nesse caso, a falta de expressão de Afleck funciona muito bem),
mas as personagens que compõem seu universo são resolvidas
de forma rasteira e equivocada: Jennifer Garner está um fiasco
como menina-rica-e-orfã e faz de Elektra uma personagem mimada
e desinteressante; Colin Farrell está engraçadinho como
o Mercenário, mas suas cenas funcionam como mero contraponto cômico,
fazendo com que o embate Demolidor x Mercenário peque pela falta
de conteúdo dramático; por fim, Michale Clarke Duncan como
o Rei do Crime (uma aposta interessante de elenco) é friamente
desperdiçado em aparições rápidas e subjugadas
pelo romance "toque-de-caixa" dos protagonistas.
Cheirando à
fórmula requentada e à falta de esmero nos detalhes, Demolidor
reafirma o lugar de seu protagonista como herói de segundo escalão
no universo Marvel, resultando numa obra preguiçosa e quase desinteressante.
Um "quase"
em respeito aos leitores e admiradores do herói que, de uma forma
ou de outra, sempre encontrarão, nesse filminho capenga, pequenas
nuances e imagens que os farão reconhecer o Demolidor ("Atrevido",
para os mais antigos) das páginas dos gibis (a cena em que Murdock
arranca um dente quebrado após uma luta era uma falsa esperança...).
Talvez menos menosprezado
pelos produtores, menos formatado ao gênero de ação
juvenil e entregue a um diretor mais talentoso, o "Batman da Marvel"
poderia dar fruto a um filme cinematograficamente tão relevante
quanto os dois primeiros protagonizados pelo morcego. Sua relação
com o submundo do boxe e da máfia de Nova Iorque e sua imagem de
guerreiro incontrolável sempre fizeram dele um personagem alinhado
ao rico universo investigado, por exemplo, pelo cinema de um Scorcese
(olha aí que dobradinha imprevisível e interessante!...),
e não merecia ter sido transformado numa aventura-pipoca tão
mal-acabada (haja visto os indispensáveis Demolidor – O Homem
Sem Medo e Elektra – Assassina dos quadrinhos).
Felipe Bragança
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