Defesa
Secreta,
de Jacques Rivette
Sécret Défense, França, 1997
Sandrine Bonnaire em Defesa
Secreta de Jacques
Rivette
A duração é sempre motivo
de anedota quando se trata de Jacques Rivette. Pior para os achincalhadores.
Porque não há duração longa em Rivette que
não comporte o plano tão belo em que Sandrine Bonnaire,
confusa e robotizada pela aparente necessidade daquilo que ela tem que
fazer, toma o metrô para saltar na estação seguinte
e a câmara acompanha tudo em uma só tomada, em tempo real.
Claro, como sempre em Rivette, esse plano se explica. Só através
dele sabemos de toda a complexidade sentimental que envolve a personagem
em todo o quebra-cabeça que envolve a trama de Defesa Secreta:
uma irmã morta que só aparece transcorrida a primeira metade
do filme, uma irmã-sósia que vem apavorar os sonhos da heroína
do filme... enfim, diversas sombras e duplos que a tela não mostra
mas que o talento de Rivette deixa claros.
Sylvie é uma metódica cientista
cuja vida estável e um pouco insuportável
é atribulada por uma novidade que ela não esperava e da
qual ela tenta inutilmente fugir. Seu irmão lhe traz a fotografia
que mostra tudo. No dia da morte de seu pai, o parceiro e principal herdeiro
é visto na estação do mesmo trem de que aparentemente
se acidentou e caiu o progenitor de Sylvie. A revelação
dessa foto dá uma certeza aos dois filhos: ele acha que deve matá-lo
porque deve vingar-se; ela acha que deve matá-lo para proteger
seu irmão. Sim, estamos diante duma retomada do mito de Elektra,
aproveitado em seu tempo em três tragédias dos três
maiores autores gregos (Coéforas de Ésquilo e as
Elektra de Sófocles e Eurípedes) e também
reaproveitado por Eugene O'Neill e Jean Giraudoux nesse século.
Sempre quando se trata da revivicação
de um mito, problemas se apresentam: qual é a necessidade do mito
numa história? É a reivindicação de um paradigma,
de um arquétipo para a experiência humana? Rivette felizmente
não toma essa posição redutora arquetípica,
mudando a história e tornando ela apenas num pano de fundo para
os acontecimentos de Defesa Secreta. Resta, então, uma outra
preocupação, que é a adequação do mito
antigo à história que nos é contada. Como nos aparece
Orestes, como nos aparece Clitemnestra, como nos aparece, como nos aparece
Egisto e a própria Electra? Alguns personagens nada mudam: Clitemnestra
é a mesma mulher diabólica que encanta os homens e as mulheres
com sua fala enganadora. Até Agamênon, morto, é o
mesmo: o que motiva tudo é o sacrifício por sua parte de
uma filha (Ifigênia ou Elizabeth) para defender os interesses do
clã ou do estado (daí a expressão Defesa Secreta,
ou "segredo de estado" dentro do filme). Orestes não
vem de longe ao encontro da irmã, e nem ao menos é corajoso.
Pelo contrário, é fraco e, mesmo tendo as chances, não
consegue realizar seu feito e matar Egisto/Walser. E o que dizer de Electra?
Ela já foi interpretada como a incarnação da vontade
de vingança, como a passiva mãe-terra diante dos acontecimentos
do homem ou, economicamente, como operador simbólico de poderes
e funções dentro da tragédia. Em Defesa Secreta,
Sylvie é uma Electra caída (no sentido anjo caído),
incomodada e incapaz de ver a verdade que está em torno dela o
tempo todo. A vontade assassina dela é desajeitada e o máximo
que ela acaba fazendo é matar uma moça inocente. É
uma Electra mais para Édipo, mais para Hamlet.
Porque o cinema de Rivette está igualmente
mais para Hamlet e para Édipo. Mais para a reflexão que
dá a dimensão da ação do que para a ação
que possibilita as reflexões. Defesa Secreta ganha muito
quando a câmara está sozinha com Sandrine Bonnaire, no trem,
no metrô, em casa, no trabalho ou na rua. Ou então no vários
pas-de-deux do filme. Sylvie conversa com seu irmão, com
o assassino de seu pai, com sua mãe pelo telefone, depois ao vivo
e por fim no trem, com Ludivine e Véronique. São momentos
de verdadeira beleza porque aí a palavra adquire seu verdadeiro
sentido político, de marcação de território
e de ratificação do já-sabido, do "aqui você
não entra" e do "diga-me que me ama". E as pausas
entre as cenas de diálogo, sempre muito grandes e extremamente
bem-filmadas, servem tanto para intensificar as palavras quanto para mostrar
a mestria da arte de Rivette. Talvez o virtuosismo às vezes pareça
um pouco vão, como nas cenas tomadas da frente do carro, sem função
além do ritmo e da beleza "inerente" à cena filmada.
Mas Rivette decepciona nas cenas em que há
mais de dois personagens. A cozinha, que pôde render tanto quando
as duas mulheres conversavam sozinhas, vira um galinheiro quando Walser
se zanga com a empregada. As cenas cabais do filme, os dois assassinatos,
são de um vazio patente, possivelmente atribuído a uma má
utilização dos corpos dos atores logo Rivette, que
no Amor Louco, em Out 1 ou em A Bela Intrigante apaixonava
pela liberdade de movimentos e de ações dos personagens,
parece tornar inútil toda ação do filme, ou pelo
menos minimizá-las pela fraca realização. Porque
Defesa Secreta parece se construir como im filme da solidão
e das palavras, a macropolítica (aqui política de mais de
dois) parece inútil e tola. Também pela macropolítica
o filme diz respeito a seu título. "Defesa secreta" é
a versão oficial dos dados, é aquilo que se deve saber para
que a posição fundamental do status quo não
possa ser rompida. Isso no assassinato do pai, e nos outros dois assassinatos
por vir, todos "acidentes". Electra vai de vítima secundária,
passa pelo papel de protegida primária e termina como vítima
primária dessa série de acidentes. É um pouco o tema
de Meia-Noite no Jardim do Bem e do Mal de Clint Eastwood, mas
não se sabe por que tanto bafafá trágico, tamanhas
incursões em universos tão diversos o da arte "pura",
o da arte "antiga" (a tragédia) e por fim o da arte narrativa
para uma conclusão desse tipo. Defesa Secreta agrada,
e muito, mas nos faz perguntar do valor que tem o valor de obra de
arte, na acepção que tem de obra de esteta, de
mago, de profeta ou prestidigitador. Claro, duas obras não podem
ser estritamente comparadas dessa forma. Mas a impressão que fica
é que no filme de Eastwood a figura do autor serviu mais
para ajudar o filme, enquanto em Defesa Secreta o fantasma do autor
impregna o filme e impede-o alguns momentos de respirar.
Ruy Gardnier
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