Debi
e Lóide 2: Quando Débi conheceu Lóide,
de Troy Miller
Dumb
and dumberer: when Harry met Lloyd, EUA, 2003
Acompanhe o que vem sendo notícia nos últimos meses. A economia
está globalmente estagnada, o desemprego assola as principais metrópoles,
os sinais de crescimento mostram-se tímidos, os dados estatísticos
sobre desenvolvimento caem e, como se isso tudo não bastasse, a
iminência de uma guerra preocupa a sociedade e coloca em evidência
um certo conservadorismo que tomou conta de parte da população.
No cinema, existem pelo menos duas saídas. Uma é tomar essa
desesperança, essas disparidades sociais como ponto de partida
para um roteiro investigativo, um documentário com denúncias
ou, quem sabe, uma bela de uma metáfora irônica. A outra
é garantir o pão nosso de cada dia sem tocar nesses assuntos.
Como resultado desse medo de arriscar, dessa estratégia de investimento
com retorno líquido e certo, aposta-se cada vez mais nas fórmulas
conhecidas e gastas, nos nichos de mercado pré-determinados, na
continuação do igual. Prova disso é a quantidade
de filmes sublegendados de "parte 2", "o retorno"
e semelhanças que chegam ao circuito nacional, via Estados Unidos.
Observe o que está atualmente em cartaz: Premonição
2, Mais Velozes Mais Furiosos, Matrix Reloaded, As Panteras Detonando,
X-Men 2, isso sem falar nos vindouros como O Retorno do Talentoso
Ripley, Bad Boys 2, Terminator 3, nas sagas (Senhor
dos Anéis, encerrando a trilogia) e naqueles que já
se tornaram contínuos e eternos por puro vício (Halloween:
Ressureição). Debi & Lóide 2, portanto,
é apenas mais uma fita que engrossa esse caldo tautológico
e que, certamente, daqui a alguns dias cairá no esquecimento completo
e absoluto.
Diferentemente do
que se pode imaginar, esse número 2 do título é apenas
uma estratégia mercadológica para angariar a presença
dos desavisados. Não chega a ser propaganda enganosa propriamente
dita. É que não se trata de uma continuação,
na verdade é o início de tudo. Uma "preqüência",
poderia se dizer. Não, não, nada a ver com Star Wars.
Jim Carrey tornou-se um ator conhecido e caro, enquanto que Jeff Daniels
continua desconhecido, porém, seguindo sua carreira com papéis
menores em outros tipos de filme. Em seus lugares, entram os novatos Derek
Richardson e Eric Christian Olsen, no papel dos personagens adolescentes.
Os irmãos Farrelly desta vez apenas contribuíram com o roteiro.
Ou seja, este filme tem muito pouco a ver com o Debi & Lóide
original.
A trama, claro, não
é nada complexa. Os abobalhados se conhecem acidentalmente (literalmente
falando) quando se trombam numa esquina. A partir daí, uma sucessão
de gafes e trapalhadas relativamente previsíveis se sucedem. Um
deles, Debi (o que seria o Jeff Daniels), tem medo de gente, se borra
todo em situações de contato com as pessoas, conversa com
piratas imaginários. Anda curvado, carregando tardiamente o fardo,
o peso da dominação materna na sua criação
e educação. O outro, Lóide (o que seria o Jim Carrey),
uma espécie de alter-ego, é espaçoso, e tem em seu
pai a idolatria de tutor. Lóide acha que é o homem que sabia
demais. Nessa dupla, um pensa que entende da realidade, o outro procura
fugir dela. Um tem mania de grandeza e o outro, de perseguição.
Ambos convivem entre si numa esquizofrenia obviamente inaceitável
pela sociedade que os cerca, principalmente na escola.
Derek (o Debi) até
que procura dar vida própria ao personagem. Sua atuação
é contida, algo que não é muito fácil de se
fazer nesse ramo. Já Eric (o Lóide) copia exatamente os
trejeitos de Jim Carrey. Seu andar trôpego e atabalhoado, seus gestos
espalhafatosos, seu jeito mole de falar, suas caras e bocas elásticas.
Retirados do contexto, poderíamos imaginar se tratar de um show
de calouros a céu aberto. Até na "vida real" eles
se completam: um tem a plena consciência de sua vida curta na carreira
artística, já o outro procura a qualquer custo fazer fama
através da imitação. Mas, apesar da unha e carne
ali presente, o roteiro e as piadas não ajudam. Por causa disso,
qualquer comparação com o Gordo e o Magro, Abbott e Costello,
Lelé e Da Cuca, é vã.
E, já que os
Farrelly cederam lugar a Troy Miller na direção, desnecessário
dizer que os primeiros fazem muita falta. Seus filmes (principalmente
O Amor é Cego e Eu, Eu Mesmo e Irene) carregam um
inerente e até saudável moralismo: por trás das aberrações,
das deformidades patológicas, sempre há um bom coração.
Em Debi & Lóide 2 isso não fica muito evidente.
Por trás das esquisitices, do olhar parvo sobre o mundo, o que
existe é apenas ingenuidade. Debi e Lóide são peças
subdesenvolvidas retiradas de outro aquário, o imaginário,
tentando se enquadrar no nosso macrocosmo das banalidades do dia-a-dia:
a escola, a lanchonete, a casa da amiga da classe. O maior problema, entretanto,
não é o espectador acompanhar essa desastrada tentativa
de adaptação. Isso, em tese, seria pano pra manga pra muitas
piadas. O que compromete a fruição do filme é a percepção
da origem desses desajustes psicopatológicos dos protagonistas:
uma educação permissiva demais, uma orientação
tutorial incorreta, a falta de neurônios, a falta de discernimento
sobre regras e condutas sociais, a não-existência de mecanismos
de defesa perante os "maus elementos" da cidade. Rir da desgraça
alheia, mesmo que o objeto de escárnio sejam inofensivos e retardados
mentais, é uma premissa que coloca o espectador na ingrata tarefa
de enxergar a linha tênue que separa a fina ironia do constrangimento
total.
É lógico
que a proposta do filme não é a transformação
dos meios, tampouco a adaptação das pessoas ao que é
considerado normal. É fazer rir, da maneira mais instintiva possível.
Sensações primárias (fome, sede, frio e calor) são
exploradas à exaustão. Não são poucos os momentos
em que se aproveita do alimento para fazer graça. O lambuzar infantil
de molho para hot dog. O deleite total ao perceber um carrinho de sorvete
passando na rua. A troca de experiências quando ambos estão
tomando raspadinha – o frio. O derreter de uma barra de chocolate no bolso
da calça – o calor -, fazendo com que o produto dessa combustão
se assemelhe às fezes. Essa é a marca mais grotesca nas
comédias de mau gosto em geral: a livre e fácil associação
erótica e escatológica entre aquilo que se consome e aquilo
que se dejeta, onde os sentidos de prazer se perdem e dão lugar
a essa noção cristã pecatória do proibido.
"Comer" deixa de ser gostoso e passa a ser engraçado.
Reforçando,
Debi & Lóide 2 tem muito pouco dos Farrelly. Falta irreverência
e sobra infâmia. Não se chegou ao entendimento de que para
ser engraçado precisa pensar engraçado, e não bolar
uma série de macaquices aleatórias. Debi & Lóide
2 é um filme desengonçado, adolescente no pior sentido
da palavra. É o genérico de Debi & Lóide,
aquele que fez sucesso não por acaso.
Érico Fuks
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