Cruzeiro
das Loucas,
de Mort Nathan
Boat
trip, EUA/Alemanha, 2002
Gaiola de
preconceitos
"I Feel Good".
Essa música de James Brown é que dá o pontapé
inicial ao filme. Nos anos 80, nove em cada 10 comédias adolescentes
toavam o conhecido refrão, lá na metade da trama. Nestes,
a música geralmente marcava a reviravolta, o momento em que o personagem
deixava pra trás as aulas, os compromissos caseiros, a disciplina,
e passava então a adotar um estilo de viver a vida e se sentir
bem com ela. Em Cruzeiro das Loucas, porém, a voz rouca
de James Brown ganha outro sentido. Desde o início, o plano fechado
em Jerry (Cuba Gooding Jr.) mostra ao espectador que, a partir daí,
aconteça o que acontecer, o personagem vai se sentir bem. É
como se o próprio diretor estivesse cantando, como que querendo
dizer "posso fazer o que quiser, mostrar o que bem entender, não
estou preocupado; vou me sentir bem com isso".
Na outra ponta, aparece
o amigo de Jerry, Nick (papel de Horatio Sanz). Um sujeito cuja aparência
e estilo não ajudam muito a conquistar mulheres, embora seja esse
seu objetivo. Nick é escancarado, gritalhão. Horatio constrói
seu personagem usando um humor obeso, explícito. Talvez ele acredite
que seja essa a melhor forma de criar credibilidade ao espectador: através
do exagero, não da ironia. Ele é que convence Jerry a passar
uns dias num cruzeiro marítimo, pois este acabou de receber um
bilhete azul de sua namorada e está passando por uma desilusão
amorosa. Está formada então a dupla do besteirol. Um é
romântico, idílico, acredita no amor perfeito. O outro é
hedonista, carnal, prefere experimentar o sexo através da quantidade,
seguindo os mandamentos de Baco.
O resto do filme são
apenas tiradas grotescas, que se utilizam do deboche e do humor fácil
para mostrar uma grande dose de preconceito. Os personagens homossexuais,
sem exceção, são o estereótipo do estereótipo.
Seus tiques afeminados fazem cada vez mais o espectador sentir saudades
de um Gaiola das Loucas, por exemplo. Não é à
toa a "coincidência" dos títulos. Com Cruzeiro
das Loucas, tem-se a impressão de que os gays do mundo inteiro
são superficiais, estéticos, dão em cima de qualquer
homem. A treinadora das garotas também não foge à
regra. Por trás de uma rigidez aparente, esconde-se a libertinagem
e a devassidão, prejudicadas pela idade um pouco avançada.
Ou seja, Cruzeiro, além de tudo, incute uma discriminação
etária, fazendo supor que os idosos são sexualmente reprimidos,
excluídos e cuja única maneira de satisfazer sua libido
é através do dinheiro ou da coerção. Já
a equipe de garotas suecas nada lembra o universo existencialista bergmaniano.
Elas apenas repetem a mítica de as mulheres da terra dos vikings
são chegadas a um sexo pervertido e ininterrupto, um vale-tudo
no ringue do amor.
Como a essa altura
do treinamento o roteiro anda que nem o mar (calmo demais), chega o momento
da ressaca. Após algumas tentativas frustradas de conquistas amorosas
e um "papo-cabeça" com um dos tripulantes, Nick se autoquestiona
sobre suas preferências sexuais. "Eu sou gay!", ele diz,
como se essa conclusão proferida fosse um resultado matemático,
uma análise cartesiana levando em consideração fatos
e suposições, embora, desvinculada de qualquer manifestação
hormonal. O filme trata o homossexualismo de forma racional. Qualquer
demonstração íntima e emocional de aproximação
entre homens seria uma heresia. Passados alguns diálogos e esclarecimentos,
Nick se dá conta de que continua hetero. Ou seja, o tema principal
do filme continua sendo um tabu, pois no momento certo para que se pudesse
reverter a trama, tudo volta como era antes. Reafirmando seu conservadorismo,
o filme coloca o homossexualismo como algo que não passa de um
chiste, um deslize, um mal-entendido, um susto para o personagem. Ao invés
do anti-clímax, o que temos é um sonoro "ufa!".
O vilão já passou.
Dependendo do contexto,
da intensidade e do objeto, uma piada aparentemente despretensiosa pode
muito bem alimentar preconceitos e disseminar sofismas. Se não
houver discernimento por parte de quem as ouve ou as assiste, o ódio
racial, a intolerância e a exclusão serão proliferados
por essas anedotas ditas sem compromisso. Enquanto que aqui no Brasil
está se estudando a legitimação jurídica de
casamentos entre pessoas do mesmo sexo, Cruzeiro das Loucas trata
essa parcela da sociedade como se fosse uma aberração da
natureza. Portanto, não é apenas um filme fútil.
É um legado da homofobia. Um retrocesso social.
Érico Fuks
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