Cronicamente
Inviável,
de Sérgio Bianchi
Cronicamente Inviável,
Brasil, 2000
Uma Crônica
dos Pontos-de-Vista
"Cronicamente
Inviável" faz dos pontos-de-vista o agente da construção
e questionamento da realidade brasileira.
O filme
Cronicamente Inviável se diferencia do resto da atual produção
cinematográfica nacional por optar por uma visão crítica
da sociedade brasileira sem o uso das constatações históricas
e personalistas (Mauá – de Sergio Rezende; e Villa-Lobos
– de Zelito Vianna) ou da romanciação idealizada (Central
do Brasil – W.Salles ; e Orfeu – Cacá Diegues). Bianchi
faz um filme construído em pontos-de-vista que se enfrentam sem
que um se anule sob o outro... O que isso significa? A percepção
de que os valores vividos pelos indivíduos brasileiros são
fruto de uma ideologia em que a busca do mais forte é diluída
em uma brasileiríssima busca do mais safo. A narração
do filme sai da onipotência (aparente quando nas primeiras sequências
a voz só é dada à personagem do escritor) por dar
voz narrativa a cada um de seus personagens e ciriar um contraponto constante
em que se converge para um dircurso do próprio filme calcado na
angústia ante a uma realidade aparentemente imutável. A
construção do espaço brasileiro se dá na descoberta
do ambiente pelos personagens: seus pontos-de-vista constróem o
espaço e não apenas o reafirmam. Isso é: para o filme
de Bianchi a objetividade da crítica do filme está em transferir
para suas personagens o papel de interpretação do espaço
dentro de elementos cotidianos de suas vidas. Para isso, o diretor foge
da formalidade artificial dos estúdios e dos planos hipertrabalhados,
buscando uma maior urgência nas filmagens, um ar documental que
se remete a um frescor das imagens, um imediatismo onde o filme parece
correr contra o seu tempo de produção em prol de uma atualidade
extrema de seus temas: o filme ocorre aqui e agora, em cenários
reconhecidos do público, em cenários que se remetem às
suas vidas mais rotineiras. O filme parece ter sido pensado dentro de
uma proposta que Hegel resumiria como: fazer do Cinema impulsos interpretativos
e de crítica em relação à realidade que remetam
à sua transformação. Em "Cronicamente...",
Bianchi atualiza características neo-realistas em um mosaico de
pontos-de-vista – o discurso do filme se entremeia nas verborrágicas
opiniões dos personagens sobre sua realidade e sobre os pontos-de-vista
alheios. A objetividade marca sua presença aí: nenhuma dessas
interpretações é mostrada sem que a narrativa apresente,
no cotidiano e nas relações rotineiras desses personagens,
a fonte de seu modo de construir e se relacionar com o mundo: O burguês
defende seu status e legitima sua posição como fazendo parte
de uma realidade brasileira (o excelente quase-monólogo em que
o personagem de Daniel Dantas explica o porque de seu direito a ser trambiqueiro);
o jovem garçom analisa a posição de comodismo da
população (na cena do ônibus lotado) como algo constitutivo
da atual sociedade brasileira; o intelectual narra a relação
sado-masoquista estabelecida entre patroa e empregada (na cena do sambódromo)
como uma mantenedora dos valores de dominação estabelecidos;
o intelectual (em uma das últimas cenas do filme) admite ser impossível
viver de livros e explicita sua ocupação de traficante de
órgãos – todas essas (e outras...) são passagens
representativas de um filme que pretende se intrometer nas relação
das diferentes camadas da sociedade com a atual conjuntura nacional. Não
há concessões, não há absolvidos – mas assim
também não há o estabelecimento de culpados – as
relações entre classes são apresentadas e a interpretação
fica por conta da narração em off de seus próprios
personagens. Isso é: não há discurso onipotente intocado
pela objetividade materialista e cotidiana da sociedade brasileira , não
há vítimas e algozes em-si, mas, sim, dentro de um tecido
social complexo e atrelado à suas características mais pragmáticas.
Essa
quebra de onipotência também atinge a apresentação
dos ambientes urbanos: imagens clichês como o corcovado ou a floresta
amazônica assumem um sentido diferente do senso-comum quando associados
à essa visão crítica e materialmente estabelecida
da realidade. Há muito mais a ser visto em uma panorâmica
do Rio de Janeiro do que uma primeira relação imagem-ideologia
dominante acaba por estabelecer – pensar a cidade como uma complexa gama
de personagens que interpenetram suas vidas e sobrevivem em um sistema
estabelecido, nos distancia da superficialidade de dissociar a beleza
de uma imagem a toda uma conjuntura social, no caso, a brasileira. A personagem
do escritor perambula pelas diferentes paisagens brasileiras e serve como
uma costura unificadora desse país que , embora seja louvado por
sua diversidade cultural, reflete um grupo de estruturas de poder e disputa
pela sobrevivência que caracterizam a democracia hipócrita
brasileira como um todo. Pensar o Rio de Janeiro sem considerarmos , por
exemplo, a realidade do interior de Rondônia é uma falsa
visão da realidade, é uma visão deturpada em que
a parte (em geral a prosperidade e beleza doas metrópoles do sul)
é tomada como todo. Bianchi mostra a praia, floresta, cidade; Bianchi
joga-nos para os pontos-de-vista confusos de suas personagens e cria assim
uma obra que une a objetividade neo-realista à uma postura pós-moderna
não-utópica de uma sociedade onde não há uma
ideologia que se preste a solucionar injustiças sociais, e onde
brasilidade não se confunde com o nacionalismo positivo da miscigenação
e da diversidade. Nesse ponto, portanto se distancia do neo-realismo clássico
ou mesmo do cinema-novo, pois não se baseia em uma objetividade
distorcida por uma ideologia revolucionária. Bianchi não
é utópico, é crítico e faz da desconstrução
das respostas estabelecidas (da caridade pequeno-burguesa à ideologia
revolucionária do MST) sua "resposta": uma não-resposta
objetiva ante a uma realidade onde a diversidade ao invés de construir
novas relações sociais vêm acumulando pequenas verdades
ilusórias em prol de uma multidiversidade inócua e não
dialogada. A crueldade das relações sociais não é
apresentada meramente como um jogo de vilões e vítimas –
esta ultrapassa isso e alcança seu ápice em cenas como aquela
em que Betty Goffman distribui brinquedos para um grupo de crianças
de rua ou, naquela que fecha o filme, onde uma mãe tenta explicar
ao filho por que ele, apesar da miséria, deveria agradecer a Deus
por ser pobre...
Bianchi
parece tratar da indiferença e das relações sado-masoquistas
como um fator comum desta sociedade e insinua a necessidade de uma virada
social justamente nesses microcosmos cotidianos onde os problemas se apresentam
em sua expressão aparentemente mais inofensiva (a cena em que Daniel
Dantas critica sarcasticamente sua empregada doméstica que esquecera
de recosturar um botão em uma camisa). O diretor, de certa forma,
transfere a postura neo-realista não só da Itália
para o Brasil como também a recondiciona em um pensamento microcósmico
privado.
O neo-realismo
encontrado em Bianchi é portanto voltado para uma atenção
ainda mais próxima do cotidiano individual (não tanto de
classe), onde os tempos mortos e as ações rotineiras são
lançados em uma espiral em que o acaso (os atropelamentos das crianças
em frete do restaurante) é um fator de ruptura da comodidade e
da aceitação de uma condição estabelecida.
A brasilidade pensada por Bianchi não é de uma generalização
de temas populares (como era defendido pelo neo-realismo Italiano), é
um mosaico e como mosaico tem sua identidade nas relações
e contrastes entre suas partes – a unidade é mesmo essa fragmentação
de sentidos e vontades que se embatem, e é essa unidade difusa
o objeto de questionamento e crítica do diretor.
Portanto,
a meu ver, é na busca da objetividade neo-realista mesclada com
a melancolia ideológica da arte pós-moderna, que o diretor,
se não aponta uma solução ideológica e politicamente
estruturada para a realidade que critica – ao menos angustia, incomoda
o público por fazê-lo perceber que uma bela risada indiferente
(e aqui está a força da montagem no cinema:) pode ser seguida
da mais aterradora das imagens...
Felipe
Bragança
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