Crônica
da Inocência,
de Raoul Ruiz
Comédie
de l'innocence, França, 2000
Em Crônica da inocência as crianças são
tudo, menos inocentes. Elas possuem total controle sobre o seu universo
e são capazes de brincar com o mundo envolvendo os adultos próximos
sem que esses se dêem conta disso. Indo um pouco mais longe, ao
saberem que tem tal poder de manipulação, estas crianças
se tornam quase sádicas, sentindo um lúdico prazer ao se
considerarem senhoras de um mundo que aos poucos vai perdendo o sentido
para seus pais mas que lhes é inteiramente receptivo. Mas essas
são apenas constatações pessoais de alguém
que foi ao cinema. Raoul Ruiz pode ter pensado em abordar o assunto, e
ele até seria suficiente para discorrer sobre o filme, não
fosse a ambiguidade da maneira de abordá-lo ainda mais intrigante.
Na verdade, é graças a essa ambiguidade que o filme escapa
da mediocridade.
Crônica da
inocência cairia facilmente na lista de filmes que usam uma
surpresa no final do roteiro como único atrativo. Porém,
aqui, há uma confusão entre o sobrenatural, o espiritismo,
crenças pessoais, psicologia e amor maternal. A história
do garoto que diz que sua mãe natural não é a verdadeira
é conduzida por esses meandros, nunca se fixando claramente em
uma possibilidade de interpretação que ajude o espectador
a decidir no que acreditar. Muito antes da resolução final,
onde as coisas de esclarecem, o mais interessante do filme é justamente
essa confusão que gera na cabeça de quem o vê. O mérito
do roteiro deixa de ser a capacidade de impressionar com truques no fim.
Ele consegue fazer coisa bem mais difícil ao contar essa história
sem permitir que nos orientemos diante do que nos é mostrado. O
desfecho vem como uma salvação, um alívio, concedendo
algo sólido e um ponto de apoio. A surpresa é quase totalmente
anulada, perdendo sua validade diante da felicidade que é poder
se reorientar e finalmente considerar os fatos do filme através
de um caminho mais lógico.
Não existe
o prazer de se contar ou assistir a uma história. Há apenas
uma sucessão de fatos que não assumem uma relação
entre causa e efeito segura.
Isso garante ao filme
um lugar distinto na lista de lançamentos do ano, mas seria injusto
parar por aqui. Afinal, trata-se de um filme de Raoul Ruiz e toda a elegância
de sua direção está presente em cada plano, cada
reação de seus personagens. A impressão de desorientação
é criada quando os atores agem, quando os cenários co-atuam,
quando a câmera se posiciona sutilmente de forma a permitir uma
expectativa de mistério. São esses elementos cinematográficos
que fazem o filme funcionar e é Raoul Ruiz quem sabe empregá-los
muito bem e coloca tudo para acontecer.
João Mors Cabral
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