Corpo
Fechado,
de M. Night Shyamalan
Unbreakable, EUA, 2000
O caso M. Night Shyamalan
definitivamente não é despido de interesse. O Sexto Sentido
era um filme "espírita" e Corpo Fechado é
um filme de super-herói mesmo que a tradução
brasileira queira nos vender esse filme como um filme "espírita",
querendo aproveitar-se do sucesso que fez O Sexto Sentido entre
a platéia espiritualista , mas vemos presente nesses dois
filmes um mesmo conjunto de preocupações: a) a figura altiva
e ascética
do homem que precisa sair de um estado de ignorância para ascender
a um estado (sublime, de comunicação direta com a divindade)
de conhecimento; b) a figura da criança-que-sabe-demais precisando
desesperadamente externar sua fantasia ao mundo exterior; e por final
c) a figura da transcendência, porque é ela que revela ao
homem-herói sua condição e revela à criança
a verdade do herói. O Filho, o Espírito Santo e o Pai.
Se em O Sexto Sentido
isso já podia ser percebido, Corpo Fechado amplia essa imagem
e nos permite entender melhor o que passa pela cabeça de M. Night
Shyamalan, apenas pela incorporação de um novo elemento
no processo: a entrada em cena do vilão. Se em O Sexto Sentido
o contraponto ao heroísmo era dado pela aparição
dos espíritos embutidos no filme sem outra possível
função além de assustar as criancinhas , em
Corpo Fechado o próprio nascimento do filme é criado
pelo vilão: é preciso primeiro inventar um arquiinimigo
para que nasça o super-herói. É o próprio
Mal, Belzebu encarnado, que é preciso destruir.
A partir daí,
a história fala por si só: Bruce Willis trabalha como segurança
num estádio de futebol americano. Num belo dia, ele transforma-se
no único sobrevivente de um desastre de trem que matou mais de
cem passageiros. Ele, entretanto, saiu ileso, sem qualquer arranhão.
Um homem (Samuel L. Jackson), sabendo disso, apresenta-se a ele como Mr.
Glass (O Homem de Vidro) e diz que não há outra possibilidade:
Bruce Willis é um super-herói. Depois disso, o filme se
imbrica por três caminhos diferentes: o menino quer provar ao pai
que ele é um super-herói (a famosa e longínqua fábula
do "pai herói", de conotações religiosas e políticas
perigosíssimas); o homem tenta descobrir se ele tem realmente poderes
paranormais; e o embate de discursos entre Willis e Jackson, onde Willis
se recusa como herói enquanto Jackson o legitima.
Mesmo que tente se
mostrar bonzinho e reverente, M. Night Shyamalan se entrega nos detalhes.
O que dizer quando, num grande foyer, todos que passam perto de
Bruce Willis são drogados, ladrões, estupradores, quando
não serial killers? Sim, o mundo que o paranóico
Shyamalan nos pinta é um mundo sujo e desumano, onde todas as pessoas
que não apresentam uma religiosidade (ou seja, todas menos a família
de Bruce Willis) são potencialmente criminosas; ou, como sugere
a visão infantil em todos os seus filmes, a humanidade é
feia, boba e chata. E qual é a resposta a ela? É a figura
do herói, um homem que – é o próprio Samuel L. Jackson
fala no filme – deve representar, defender e resguardar todos aqueles
que são fracos o suficiente para não poderem se defender
por si próprios. Da mesma forma que no Sexto Sentido a morte
é para Bruce Willis a sua forma de redenção, em Corpo
Fechado a descoberta de um dom é seu fator divinizante. E a
luta não é outra: trata-se da luta do Bem contra o Mal,
em seu aspecto mais simplório e definitivo, como nos deixa ver
o Mr. Glass quando comenta um dos desenhos que está expondo.
É na luminosidade,
no entanto, que tudo fica mais evidente. Nas cenas em que Bruce Willis
"vê" o passado das pessoas, a iluminação torna-se
expressionista e a película utilizada é de uma sensibilidade
diferente, privilegiando os vermelhos e os verdes-musgo, as cores das
roupas dos criminosos. Eles são banhados por um jato de luz que
não deixa dúvida: são fiéis seguidores do
demônio, enquanto Bruce Willis é o Bem absoluto: ele inclusive
tem em seu uniforme a insígnia "Security" (Segurança) estampada.
M. Night Shyamalan
em Corpo Fechado sai do rol das promessas boazinhas de Roliúde
e passa a fazer campanha juntamente com David Fincher entre os novos diretores
parafascistas americanos: um superego masculino que deve proteger o homem
comum das contingências da vida, um descontentamento com o mundo
porque ele não é devidamente "animado" e uma misoginia necessária
para esconder uma possível homossexualidade fundamental. Em Seven
e em O Clube da Luta, em O Sexto Sentido e Corpo
Fechado, as mulheres são relegadas a meras companheiras, a
verdadeira intriga se delineando entre o ideal do Bem (Brad Pitt como
Policial, Bruce Willis como Segurança) e a idéia (-feita)
do Mal (serial killers, nos dois casos), todos eles representados
única e igualmente por homens. Esses dois cineastas, ao figurarem
o Mal absoluto em suas respectivas telas, não conseguem esconder
o que realmente lhes interessa: tal qual o personagem de A Humanidade,
eles querem se assimilar ao Mal para poder superá-lo e santificarem-se.
Só que para isso, eles têm que inventar o Mal! Santa Hipocrisia,
Batman!
Ruy Gardnier
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