Paralelas
e Transversais
Coisas Que Você Pode Dizer Só de Olhar
para Ela, de Rodrigo Garcia
Infiel, de Liv Ullmann
Things You Can Tell Just
By Looking At Her, EUA, 2000
Trölosa, Suécia, 2000
Existe um tipo de plano no cinema que é
um dos mais sutis e de difícil uso. Em inglês chamam-no "reaction
shot", em tradução direta "plano de reação"
(embora não se use o termo). Não é apenas um contraplano,
mas sim um plano em que a ação está acontecendo fora
do quadro, e nós não a vemos, apenas a reação
de um (ou mais) personagens. Pois bem, se mais nada os unisse ou destacasse,
a capacidade de fazer deste tipo de plano quase a norma, geralmente com
ótimos resultados, é o que mais me motiva a trabalhar estes
dois filmes juntos. Tanto Garcia quanto Ullman conseguem criar inúmeros
planos belíssimos apenas mostrando rostos de atores que reagem
ao que lhes é dito.
Mas, não é por acaso que isso
acontece nos dois filmes, e aí é que começamos a
mergulhar nas outras semelhanças entre os filmes. Ambos são
filmes voltados para o universo feminino, idealizados por homens. Claro,
Liv Ullman é mulher, mas além do roteiro ser escrito por
Ingmar Bergman, a presença "artística" deste é
sentida em todo o filme. Não por acaso, então, fala-se muito
nos dois filmes. É impressionante como o som da voz humana domina
praticamente toda a duração dos dois filmes, o que é
perfeitamente compreensível num homem tentando retratar as mulheres.
Conversa-se, muito. E daí vêm os tais planos de reação.
No caso do primeiro filme, eles são especialmente notáveis
no início, com a personagem de Glenn Close. Trata-se do tipo de
sequência que vale um filme: uma vidente vai descrevendo tudo sobre
a personagem e sua vida, e nós ficamos no seu rosto silencioso
o tempo todo, acompanhando cada mínimo movimento muscular de sua
face (como só o close no cinema permite). É deslumbrante
o trabalho de Close nesta cena, inesquecível mesmo. Mais adiante
outras grandes atrizes terão momentos semelhantes, como Holly Hunter,
Kathy Baker (menos conhecida, mas excepcional), Calista Flockhart. Já
no filme de Ullman, embora todos os personagens tenham planos assim, a
maioria deles é de um ator: Erland Josephson, um veterano craque
dos filmes de Bergman. Aqui ele interpreta o próprio autor que
"ouve" a história de seus próprios personagens,
e vai se emocionando cada vez mais, em planos fortes de seu rosto.
Mas este recurso de linguagem está
longe de ser o único ponto de contato entre os filmes. O principal
é mesmo a questão feminina, mas um outro particular une
essas histórias. Num certo ponto do filme de Garcia uma personagem
fala de "coisas que não se pode dividir", "coisas
que acontecem por trás das portas". Interessante, mas quase
no final de Infiel, a personagem feminina também diz que
é difícil "falar sobre o que não há palavras".
Ambos os filmes possuem este tom, o tom do confessionário, o olhar
do espectador que atravessa um olho mágico e passa quase o tempo
todo dentro das casas, observando os momentos mais íntimos, muitas
vezes querendo pedir desculpas por haver visto algo impróprio,
que não se devia mostrar. Ambos os diretores mostram dominar o
tom correto para estas revelações, para estas filmagens
sobre o que não se vê.
A principal diferença talvez esteja
no tom, e no recurso narrativo básico. Enquanto o filme de Garcia
se divide numa série de curtas que se unem pelos caminhos cruzados
das personagens, criando pequenos contos interdependentes, o de Ullman
é uma grande novela familiar centrada em 3 personagens ao longo
de mais de duas horas e meia. Onde Garcia usa subtons ao ritmo (quase
irritante, é verdade) de um "cool jazz", o tom de Ullman
é lá em cima, muitas vezes melodramático mesmo, buscando
atingir a catarse. Principalmente, talvez, os contos de Garcia são
filmados com uma câmera "escondida", que não se
revela, enquanto Ullman junta à sua história propriamente
dita a discussão da criação artística, na
figura do autor para quem a história é narrada (numa inversão
com a qual a diretora brinca ao longo do filme). Volta-se constantemente
ao convívio físico deste autor com seus personagens, e em
especial com a condutora da ação, que é a mulher.
No filme de Garcia, talvez haja alguns excessos
com relação ao já citado uso da música, e
também o recurso do cruzamento das histórias parece batido
a essas alturas, e completamente desnecessário ao filme. Porque
não assumi-lo como uma série curta de histórias.
O filme tem algumas características de destaque, como assumir um
anão como personagem sério num caso de amor (o mais belo
episódio do filme, talvez), e acima de tudo trabalhar sobre o chamado
"nada", construindo seu drama do convívio humano simplesmente.
Neste sentido é uma boa idéia o uso de uma personagem como
ligação sobre a qual de fato nada sabemos ao fim do filme,
mas a idéia é mal aproveitada na forma como esta ligação
é sempre arbitrariamente realizada. O diretor revela ainda um louvável
talento para tornar suas personagens "vivas" com muito pouco
tempo de tela, contando com atrizes ótimas é verdade, mas
também com um roteiro costurado e um trabalho de mise-en-scène
cuidadosamente planejado.
Já em Infiel impressiona acima
de tudo o caráter "sueco" de dissecar uma história
emocional e exagerada como esta com extrema frieza. A narração,
a forma de buscar cada detalhe, chega a ser incômoda na sua obsessiva
descrição. É também muito boa a forma de unir
a narração com o autor e as cenas da história, pois
cria-se um jogo onde algumas ações ou palavras são
encenadas, e outras são apenas mostradas como "tableau-vivants"
enquanto a narração fala o que se diz ou faz em cena. A
alternância entre os dois métodos mantém a narrativa
sempre viva e intrigante. Claro que no final, sendo a Suécia, aparecerá
um suicídio, e todo o peso daquela encenação será
sentido nos planos em que o autor tenta consolar seus personagens.
Voltando ao início, de fato o que
mais impressiona nestes dois olhares indiscretos sobre um mundo feminino,
que busca sua compreensão com a cumplicidade de atrizes fenomenais,
é a capacidade de filmar o rosto humano como a paisagem por natureza
do drama no cinema. Os closes em ambos os filmes são impressionantes,
e em boa parte inesquecíveis. Seja agindo, ou reagindo.
Eduardo Valente
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