Close
Up,
de Abbas Kiarostami
Namay-e Nazdik, Irã,
1990
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Mohsen
Makhmalbaf e seu "duplo" em Close Up
de Abbas Kiarostami
"Parodiando
o "Cogito ergo sum" de Descartes, eu poderia dizer: "tenho
uma imagem, logo existo". Que seria o mundo, que visão teríamos
de nós mesmos, se não existisse a possibilidade de oferecer
a cada um seu reflexo, seja o de uma fotografia, de um espelho ou de um
reflexo na água? Todos têm necessidade e vontade de ver sua
imagem. Porque somente ela nos permite acreditar em nós mesmos
e de tomar consciência de nossa existência." – Abbas
Kiarostami, 19941
"Eu
sou um exemplo genuíno de uma doença social" –
"Social Disease", Elton John e Bernie Taupin, 1973
O lançamento
tardio da seminal obra-prima de Abbas Kiarostami numa esfera reservada
(mais do que o normal) do circuito de filmes de arte aqui do Rio de Janeiro,
se não faz jus ao reconhecimento crítico internacional do
filme (que se confunde com verdadeira veneração, em alguns
casos), ao menos demonstra a forte reputação de que seu
diretor goza entre os programadores e freqüentadores deste circuito,
o que se deve pelo menos em parte ao sucesso de seus filmes em festivais
internacionais (a mais provável causa da constante visibilidade
de seu nome nos cadernos culturais: esta última a causa mais direta
do lançamento de seu trabalho por aqui).
Este condicionamento
dos exibidores aos interesses das seções de cultura dos
jornais e revistas locais tem suas vantagens, naturalmente: conquanto
Kiarostami não saia de moda e as estrelinhas abundem, a exibição
de seus filmes está garantida. Por outro lado, e já não
me refiro somente às idiossincrasias dos programadores, uma relação
infeliz em muitos aspectos parece prevalecer e desequilibrar a equação
em que o próprio Kiarostami encaixa sua obra e que o crítico
Inácio Araújo tão bem sintetizou como a "pergunta
básica" de seu cinema: "onde se forma o filme? Ele existe
na cabeça que o concebe? Na realidade que a câmera apreende?
Ou no olhar do espectador?"2
Se levarmos em conta
ainda a resposta de Inácio, "simples e complexa ao mesmo tempo",
fica mais fácil marcar o ponto: "em todos esses lugares. Ao
cineasta cabe organizar um material capaz de sugerir idéias ao
espectador. À câmera, apreender fragmentos de um real que
preexiste ao filme. Ao espectador, por fim, partir dessas sugestões
e fragmentos para compor algo que possa se chamar de uma realidade".
Um cinema, enfim, que exige uma participação efetiva do
público, propondo uma experiência que só adquire sentido
numa narrativa partilhada, coletiva.
Se, como eu gostaria
de acreditar, Close-up estava diante de um público sofisticado,
em busca de olhares novos, inusitados, e capaz de retribuir criativamente
às provocações que o filme lhe fez o tempo inteiro,
como cabe aos freqüentadores de um espaço também tão
sofisticado como o Instituto Moreira Salles, por que razão me deparei
ao longo de toda a exibição com as mais diversas manifestações
de frieza e desinteresse de grande parte de meus companheiros de sessão,
como bocejos altos e conversas paralelas que desafiavam o sistema acústico
da sala e preenchiam os silêncios do filme? Recuso-me a aceitar
que velhos hábitos condicionem o olhar destes espectadores e que
suas reações foram causadas por pura frustração
diante de uma obra que ultrapassa a condição de uma "diversão
mais sofisticada", que escapa à lógica das estrelinhas
e bonequinhos da crítica de plantão nos cadernos de cultura.
Diante dos fatos, porém, não me resta muita alternativa
senão apontar parte da culpa para este jornalismo cultural de péssima
categoria, cada vez mais o espaço da não-reflexão
e da classificação fácil, palco da perpetuação
de um ritual de mediação e condicionamento do interesse
e do olhar do espectador que redunda, pela incapacidade de seus agentes,
em uma distância entre a obra e seu público não facilmente
transponível apenas pela disposição e pelas tentativas
destes últimos em estabelecer uma relação mútua
necessária em seus devidos termos (e isto vale especialmente para
os filmes de Kiarostami).3
Nada mais irônico
que Close-up se valha desta relação com o público
(que ganha ares de utopia nesta minha avaliação algo apocalíptica)
para instaurar sua investigação acerca da figura verídica
de Ali Hossein Sabdzian, e de seu gesto, descrito na manchete de uma revista
local, se a memória não me falha, nos seguintes termos:
"Falso Makhmalbaf preso ao tentar extorquir família".
Antecipando-se aos créditos (colocados sobre o gesto maquinal da
revista sendo impressa, uma indicação do "momento zero"
da trama), um prólogo reencena a partida de um jornalista, Hossain
Farazmand, acompanhado de dois policiais e um motorista (o único
ator profissional do filme – todos os outros representam a si mesmos),
em busca da casa da família Ahankhah, onde se efetuará a
prisão do impostor Sabdzian, que se fez passar pelo famoso cineasta
Mohsen Makhmalbaf, sob o pretexto de fazer um filme usando a casa da tal
família como cenário e seus filhos como atores. A situação
é apresentada durante o trajeto da viatura sob o ponto de vista
do jornalista, sujeito bonachão e conversador, que não tarda
a clamar para si a descoberta da história e seu interesse em abordá-la,
na ambição de realização e reconhecimento
profissionais, sob um foco de "interesse humano" ou de crônica
de costumes, copiando o estilo de uma famosa jornalista iraniana reconhecida
internacionalmente (mas da qual o motorista e os outros passageiros nunca
ouviram falar). Que Farazmand termine inscrevendo, em sua manchete espalhafatosa,
a experiência de Sabdzian e dos Ahankhah na lógica do fait-divers,
do drama particular tornado espetáculo de massa, não faz
dele a reserva do anedotário (que ele busca fazer crer em sua performance
de si mesmo), mas a própria anedota, com direito a complemento
burlesco em sua posterior busca de casa em casa por um gravador portátil,
um momento nada raro de ironia na mise-en-scène de Kiarostami.
Uma vez apresentado
o objeto, mas recusado o método (da reportagem tosca, imediata,
banalizante), Kiarostami inicia sua investigação procurando
Sabdzian em uma delegacia onde ele se encontra preso. Embora a forma indique
a abordagem documental neste primeiro encontro, em que Sabdzian revela-se
um amante do cinema (um fã particularmente ardoroso de Makhmalbaf
e de seu filme O Ciclista) e declara-se inocente, com um uso sutil
do zoom in num longo e belo plano que se fecha com um close-up
de Sabdzian (o primeiro de uma série), não sabemos ao certo
se trata-se de reencenação ou documentário direto,
e este é um sentimento que, daí para a frente, não
se perderá em nenhum instante. O diretor oferece qualquer forma
de ajuda ao rapaz, ao que ele responde: "faça um filme sobre
o meu sofrimento e o de meu povo, como faz o sr. Makhmalbaf".
Kiarostami parte,
então, em busca do depoimento da família Ahankhah e da permissão
da autoridade responsável pelo caso, o juiz Ahmadi, para filmar
o julgamento de Sabdzian. Obtida a permissão, não sem alguma
recusa inicial do magistrado, o cineasta instala suas câmeras no
tribunal, uma delas fechada num close de Sabdzian, para coletar
os depoimentos de todos os envolvidos no processo. Estes depoimentos formam
a coluna dorsal do filme, e são entrecortados algumas vezes pela
reconstituição de momentos-chave dos acontecimentos.
Esta estrutura implica
nas questões fundamentais que o filme propõe. Há
uma diferença de tons, claramente marcada pelo uso de dois formatos
diferentes no registro (16mm ampliado para o tribunal; 35mm para as reconstituições),
que poderia indicar uma distinção entre o depoimento espontâneo,
recolhido no "calor dos acontecimentos", uma forma documental,
enfim, e a encenação que dramatiza os acontecimentos reais,
uma forma claramente ficcional. Esta distinção, entretanto,
é posta em xeque pela agressiva participação de Kiarostami
no tribunal, quando fica claro que a presença da câmera e
da equipe pode e vai mudar os rumos daquele julgamento. Da mesma maneira,
a sutil barreira entre o "verdadeiro" e o "falso"
das encenações, nos leva aos poucos a pensar até
que ponto o que estamos presenciando no tribunal não é também
um jogo dramático, com todo o grau de manipulação
que isto exige da parte de todos os seus elementos. Não ajuda em
nada descobrir que boa parte do que vemos e julgamos "real"
é fruto de uma montagem diabólica e que um longo trecho
utilizado nestas seqüências do julgamento foi, na realidade,
colhido depois de pronunciado o veredito do juiz, sem sua presença
na corte.4
A distinção
(falsa?) entre real e ficção tem, porém, uma função
bem clara e determina a estratégia que Kiarostami adota para abordar
seu tema primordial: a identidade. As reencenações do acontecimento
original buscam o falso na atitude mesma de Sabdzian: evocam o momento
inicial da farsa e sua evolução até o desmascaramento
final. Por outro lado, o documental, centrado num palco de revelações
e busca de uma verdade jurídica, vai investigar, sob o pretexto
de buscar as intenções de Sabdzian, sua natureza e identidade
"verdadeiras" (social, ideológica, etc.), do homem por
trás da máscara. Kiarostami reconhece a incapacidade das
duas formas em determinar uma face definitiva, satisfatória, de
seu objeto e constrói seu discurso no limiar, no limite de ambas,
em sua combinação sutil e em seu confrontamento mais radical.
Assumindo a crise
da representação e internalizando-a desta forma, Close-up,
em sua busca de uma realidade, de uma verdade que se afasta e não
se deixa apreender facilmente, coloca ainda um debate sobre o papel social
do cinema em uma chave contemporânea e de maneira inusitada. O cinema,
a imagem, é antes de tudo aqui, uma questão de classe. Há
um certo nível de perversão envolvido na fala de Sabdzian,
quando o próprio reconhece em sua atitude farsesca um gesto de
compensação e vingança sutil, quando, repentinamente,
de João Ninguém, desempregado e desesperançado, ele
se transforma em um artista reconhecido, podendo exercer uma autoridade
quase irrestrita sobre aquela família abastada e sedenta de representações
imagéticas tanto quanto ele. Do lado da família, servindo
de contraponto, há a figura do filho, Merhdad, formado em engenharia
e desatarefado por escolha própria, que busca na carreira artística
algo que preencha um vazio existencial e a "falta" de opções
de trabalho que desafiem sua personalidade. "Prefiro ser artista
a padeiro", diz Merhdad no início do filme. É de sua
boca também que sai o perdão da família ao final
do julgamento, resolvendo verticalmente o conflito de classes numa chave
paternalista como um gesto de compreensão que demonstra sua posição
como o "detentor da verdade".
O grito de Sabdzian
por um cinema que dialogue com sua realidade imediata encontra uma resposta
complexa na resolução que o filme apresenta a seu conflito
(um encontro final entre o falso e o verdadeiro Makhmalbaf). É
uma aposta otimista, sem dúvida, mas com um certo grau de ironia,
em um reencontro simbólico do cinema com a realidade, em que impera
uma crença no valor positivo da imagem, como lugar de reconhecimento
e tomada de consciência do homem em toda a sua complexidade.
Fernando Veríssimo
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1. Manipulations, Entretien avec Abbas Kiarostami, in Positif, nº
442, dezembro 1997, p. 96
2. Suspense e Suspensão, in Folha de São Paulo, 11 de janeiro
1998
3. Baseado numa amostragem tão limitada, posso até me enganar quanto às
reações deste público de modo geral. Mas a experiência de várias sessões
de filmes do próprio Kiarostami (sem contar a frieza com filmes como os
de John Cassavetes, exibidos aqui no último Festival do Rio, também receberam
da platéia) não contam histórias muito diferentes. Posso até me valer da
explicação de Jonathan Rosenbaum, que, também assustado com a reação do
público e de parte da crítica em relação a Gosto de Cereja, buscou
sua resposta historicamente na relação conflituosa entre o cinema moderno
e o público: "much of what has been called innovative in the art of movies
over the past half century has at first been seen by part of the audience
as boring or as representing a loss – usually because it has somehow redefined
the shape and function of narrative" (Fill in the Blanks, Chicago
Reader Movie Review Online).
4. Ver Manipulations..., p. 94 - 95. |