Chicago,
de Rob Marshall
Chicago,
EUA, 2002
Logo no início de Chicago, duas coisas parecem ficar bem
claras: primeiro que Rob Marshall é muito mais um coreógrafo
do que um cineasta. Por isso, tudo no filme que remete aos números
musicais funciona muito melhor do que a encenação fora deles.
Segundo, que o filme tem uma atitude em primeira instância covarde
quanto ao aproveitamento do formato "musical" na sua estrutura: cria uma
solução onde todas as coreografias acontecem na imaginação
da protagonista, e assim tenta se proteger do anti-naturalismo das explosões
de dança e cantoria no meio de cenas de interação
entre os personagens (o que é, afinal, o coração
do musical cinematográfico). Separados os números musicais
dos eventos dramáticos, de fato o que acontece nos primeiros momentos
do filme (que levam Roxie à cadeia e a introduzem ao ambiente de
lá) é que o diretor parece estar rezando para dois deuses,
sem prestar sacrifícios a nenhum deles. Assim, estes primeiros
números parecem gratuitos, forçados, atravancando o andamento
de um imbroglio dramático em si mal encenado e mal resolvido.
E eis que, de repente,
não mais que de repente, como deve ser segundo a cartilha hollywoodiana
de surpresas, algo acontece que muda inteiramente o funcionamento do filme:
a entrada em cena do personagem de Billy Flynn, interpretado por Richard
Gere. Esta mudança se dá por dois motivos, principalmente.
Primeiro porque aquilo que parecia uma narrativa banal de sonhos frustrados
e inveja, ganha uma motivação maior para existir: o retrato
de um mundo em constante estado de "teatro", onde as encenações
da vida são semelhantes às dos palcos, e se confundem o
tempo todo. Onde nada é "real", tudo é construído,
e assim sendo, a estrutura que une números musicais e filmagem
dos fatos passa a fazer sentido. E em segundo porque o personagem de Flynn
liberta todos os outros das amarras esquemáticas de até
então, cancela qualquer imagem de heróis positivos possíveis,
e mergulha o filme num ambiente de cinismo tal que contagia o ritmo do
filme ao ponto do cineasta parecer ter chegado na parte da história
que o interessava narrar. Flynn dá ao filme finalmente uma razão
de ser, e junto com isso uma lógica interna estrutural e uma motivação
aparente de realização. Da água para o vinho, o até
então enfadonho Chicago se torna vibrante, efetivamente
engraçado, e significativo até mesmo em termos do conteúdo
cínico, beirando o amoral. Billy Flynn é o amoral teórico
da enganação consentida, que empresta toda a urgência
de que Chicago precisa. Um personagem que é, dramaturgicamente,
um coringa e um ladrão de cenas e de filme Não há
mais personagens bons, e sim calhordas absolutamente simpáticos.
O filme parece se energizar, e o elenco todo sobe de produção
com destaque do completamente relaxado Gere até a deliciosamente
sardônica Renée Zellweggler, e ao hiperadequado John C. Reilly,
bem melhor aqui do que em Gangues de NY.
Há um ponto
específico desta mudança, aliás: a cena do Ragtime
do Ventríloquo, desde já um dos melhores números
em todo cinema musical, seja em concepção visual, filmagem
ou conteúdo intrínseco de letra/canção. Sobre
isso, aliás, um comentário faz-se necessário: mesmo
no início muito fraco e mal resolvido, as partituras de letra e
canção são nunca menos que ótimas, com andamentos
inesperados e, acima de tudo, duplos e triplos sentidos em cada frase
que dão ao filme uma ousadia adorável. De uma coisa não
resta dúvida, seja no início claudicante ou no desenvolvimento:
Chicago, no palco, e com direção de Bob Fosse, devia
mesmo ser o musical genial que tanto se diz. Dá para se imaginar
melhores soluções cênicas a serviço do mesmo
conteúdo explosivo e cínico, e o olhar ao mesmo tempo "mainstream"
e altamente crítico que Fosse sempre imprimiu a tudo que fazia.
Rob Marshall não
é o gênio que Fosse sempre foi. Mas, se fica a certeza de
que o filme não chega a ser tão azeitado quanto uma encenação
nos palcos poderia ser, a partir desta virada mesmo Marshall consegue
manter até o final o ritmo e a interação adequada
entre trabalho de atores e números musicais (onde especialmente
os do julgamento são ótimos). Como realizador, pára
de atrapalhar o ótimo material que tem em mãos. E, principalmente,
consegue respeitar um libreto/roteiro cheio de um cinismo de sutis detalhes
e observações satíricas sobre o mundo do show business,
o mundo da justiça e das leis e o mundo da imprensa (instituições
que, não custa lembrar, são três pilares do "sonho
americano" de justiça, liberdade e expressão). Nenhum deles
é respeitado em qualquer momento, e explicita-se o estado de teatro
que rege a relação entre eles.
Este retrato, ainda
que bastante centrado numa época e local (a Chicago dos anos 20/30),
tem óbvia leitura atual, desejada e conseguida pela produção:
um filme sobre as aparências que desejamos construir e as que desejamos
consumir. E sobre como é fácil iludir os que já querem
mesmo ser iludidos e entretidos. Billy Flynn e o mundo que ele desvela
é uma metáfora que parece nunca mais perder a validade.
Um pouco de "razzle-dazzle", como ensina uma canção, sempre
permite esconder evidências contrárias por detrás
de um monte de plumas e paetês. Seja da parte de presidentes em
busca de uma Guerra sem justificativa, seja de políticos cercados
por uma situação da qual não sabem sair, como, digamos,
a avalanche de violência urbana. Ou que seja da parte de um realizador
e artista como Fosse que, mais do que ninguém em Hollywood ou na
Broadway (ou, pelo menos, do que ninguém que tenha atuado em ambos,
os mais conhecimentos "templos do entretenimento" modernos),
conseguiu dar o formato do mais alto grau de "entertainment"
a peças e filmes de conteúdo absolutamente inflamáveis
e contracorrente. Marshall não é um criador do mesmo nível,
mas se revela um continuador de bom escalão, tanto no domínio
do básico do "razzle dazzle", quanto no humor e olhar
sutil.
Quem sabe um dia ainda
não se encenará o musical Iraque, ou quiçá
Beira-Mar - The Movie? Pensando melhor, eles já estão
em cartaz, e parece que são sucessos de público. "That's
all, folks".
Eduardo Valente
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