Prenda-me se For Capaz,
de Steven Spielberg


Catch Me if You Can, EUA, 2002


Prenda-me se For Capaz é um filme sobre falsas aparências; dizer que é um filme enganoso, então, é depor unica e exclusivamente a seu favor. É em especial gratificante descobrir que, sob a aparência de um trabalho menor, em ambição e tom, Steven Spielberg realizou seu filme mais bem resolvido desde E.T. (1982). Dito de outro modo, Prenda-me se For Capaz é um filme repleto de conquistas discretas, mas superlativas.

Depois de levar a termo, ao que tudo indica em definitivo, uma tentativa de diálogo mal resolvida com John Ford (em O Resgate do Soldado Ryan), e de arriscar um embate direto de idéias com duas das mais autênticas vozes críticas do século passado no terreno da ficção-científica (Stanley Kubrick em A.I. e Philip K. Dick em Minority Report – A Nova Lei), com resultados nem sempre favoráveis, Spielberg parece ter superado de vez uma fase que poderíamos rotular de sua "missão divina", em que seus talentos de cineasta só pareciam valer algo se estivessem a serviço da nobreza intrínseca à temática ou à origem dos projetos escolhidos (ou herdado, no caso de A.I.). Um problema de personalidade, portanto.

Assim, a referência a certos autores (cuja incidência em sua obra sempre foi, de modo geral, nula) presente em seus últimos filmes parecia, e de certo modo era, uma impostura. Samuel Fuller, Fritz Lang, Brian DePalma, George Romero ou mesmo o próprio Kubrick faziam as vezes de interlocutores de um cineasta com intenções elevadas e ambições desmedidas; de uma obra, por assim dizer, inflada.

Prenda-me se For Capaz tem ao menos um mérito indiscutível, que é recolocar no centro do relato a problemática própria e particular do cineasta: afinal, a Spielberg o que é de Spielberg. Aqui, a presença de seus temas e obsessões favoritos (a fissura familiar, o porto seguro que é o lar suburbano, o indivíduo de personalidade desviante no embate com uma determinada ordem social) não interrompe subitamente uma narrativa que não a comporta (como em Minority Report); pelo contrário, não se trata mais de um problema de integração ou ajuste dos temas ao relato: aqui eles caminham juntos e são indissolúveis.

A trama em si não traz nada de muito novo ao inventário spielberguiano: um adolescente com um talento todo especial para a vigarice (Leonardo DiCaprio), ao se defrontar com o divórcio dos pais, parte para o mundo com sede de aventuras; como não tem dinheiro para bancá-las, termina acumulando milhões de dólares em pequenos golpes, fazendo-se passar por toda sorte de figuras. Em seu encalço segue um agente do FBI (Tom Hanks), mais um burocrata que um policial.

O maior interesse do filme recai sobre a execução das falcatruas e fugas de DiCaprio, gestos cuja essência nunca é totalmente apreendida (uma linha invisível separa a provocação adolescente e o gesto calculado de vingança contra o sistema), mas cuja origem e motivação são rastreadas do primeiro ao último plano. Que a história se passe na América dos anos 60 não importa tanto: Spielberg recria este cenário seguindo as mesmas leis dos universos futuristas dos filmes anteriores, alcançando o mesmo (feliz) resultado.

Prenda-me se For Capaz aproveita o mesmo "motto" de Minority Report ("gotta keep running", diz o holograma do filho de Tom Cruise): um chamado enérgico ao movimento constante, incessante. Lá, como cá, um mesmo desejo de repouso, de uma conclusão que justifique o percurso resulta num fim melancólico: em A.I. e Minority Report a reconstituição irreal, num delírio edipiano, do lar arrasado; aqui, a resignação ao anonimato, no ambiente frio de um escritório do FBI.

É, porém, na sua falsa conclusão (algo em que Spielberg vem se especializando, pode-se dizer), uma sequência belíssima e direta, que Prenda-me se For Capaz oferece um dos momentos mais autênticos e sinceros de toda a obra do cineasta: uma última escapada mirabolante que leva o herói à derradeira constatação de sua condição e de seu fracasso último. Uma sequência sintética, de construção tão discreta quanto devastador é seu efeito.


Fernando Verissimo