Carandiru,
de Hector Babenco
Carandiru, Brasil, 2003
O "acontecimento Carandiru"
figura na memória pública brasileira entre os maiores massacres
de sua história moderna – filho direto do curto-circuito midiático
contemporâneo, tornou-se sinônimo maior da violência
após a morte dos 111 presidiários em 1992. O que antes era
apenas um grande presídio mal administrado, tornou-se a imagem
fúnebre da derrota institucional brasileira, chegando ao limite
em sua recente demolição. Dos desdobramentos judiciais aos
espetáculos televisivos, dos gritos por justiça das letras
de rap às análises sociológicas comedidas, dos relatos
pessoais aos pareceres técnicos de peritos, CARANDIRU tornou-se
palavra-imagem absoluta, tendo ao mesmo tempo um perfil monolítico
e fragmentado. Carandiru, o lugar, torna-se então vários
Carandirus - gestos onde o espaço do cárcere se desdobra
e não mais se sustenta como objeto apenas.
Quando Dráuzio Varella
lança seu livro Estação Carandiru a sede pelos
relatos reais dos presidiários se lança sobre o livro com
todo o vigor: queremos saber o que pensam os presos, queremos saber suas
histórias. Mas Drauzio, num movimento simples e, eu diria, clínico,
escreve um livro onde a simplicidade de suas habilidades literárias
funcionam para realçar um aspecto central em sua escrita: o assumir-se
testemunha estranha, o aceitar-se como contador de histórias alheias,
aberto às suas narrativas, mas não íntimo. O título
do livro, Estação Carandiru, remete diretamente ao
caminho pessoal, ao trajeto que ele, o médico, faz para chegar,
de metrô, aos portões do presídio. O livro não
tem o nome "Carandiru", o livro tem o nome de uma estação,
de um local de chegada, de desembarque num estranhamento e curiosidade.
Essa despretensão sutil é a primeira pista para se observar
no filme de Hector Babenco a origem de suas virtudes e a fonte de outros
pecados.
"Carandiru", diz
o título do filme; só assim: Carandiru. Objeto de observação
inteiriço, o presídio tem seu interior invadido pela zoom
veloz de Babenco e se torna em tela preta – de lá, diante de nós,
saltam aos olhos a palavra que lhe dá nome. Objeto inteiro e capturado,
cujas entranhas preparam-se para ser destrinchadas. Anunciado aqui já
está o ponto do nó cego, o lugar de onde o filme não
soube depreender claramente suas amarras...De qual Carandiru faça
Babenco? Fruto talvez de um desejo de totalidade, da tentativa de ser
definitivo (lembramos do caso Cidade de Deus), o filme recai num
traço imaturo de uma cinematografia cujos passos pesados parecem
querer lhe provar músculos no lugar de suas banhas aparentes. Delineando
seu território como ícones de fácil percepção,
apostando na metonímia para construir um pacto de profunda realidade
com o espectador.
Mas Carandiru, o filme
de Hector Babenco, felizmente, está além de sua tentativa
de parecer importante e grandioso. Há no trabalho de cenografia,
na construção do pôr-se-em-cena, uma fina sintonia
com a criação da atmosfera, da sintonia que compõe
aquele painel de vidas dispersas. Deixada de lado a falsa pretensão,
Babendo se entrega àquilo que ele melhor soube fazer em filmes
como Pixote: construir um olhar amoral sobre a vida marginalizada
da cidade grande, seus hábitos, suas verdades múltiplas.
Para a decepção de muitos, Babenco não veste a carapuça
do pseudo-sociólogo descido dos céus para fazer mapeamentos
de tipos; não está interessado em funcionalismos históricos,
em descrições estruturais, Hector Babenco veste a carapuça
do cineasta, do contador de histórias, do criador de imagens e
artesão de dramas pessoais. Esbarrando, certamente, num academicismo
pesado (tentativa de um naturalismo eficiente mas decepcionante), o filme
se sustenta na força de suas personagens e esforços de seu
elenco:
Pondo os personagens na altura
dos olhos do espectador, Babenco elege seus protagonistas a partir do
filtro encenado das consultas médicas de seu pseudo-protagonista.
Didático em sua estrutura, o roteiro peca nos diálogos entre
médico e prisioneiros, tentando chegar a um ponto de intimidade
pouco crível (responsabilidade também da fraca atuação
de L.C. Vasconcelos).
Liberto do espaço
do consultório, porém, entregue às narrativas das
memórias das personagens e aos dilemas entre os presos, o filme
ganha em vida aquilo que lhe falta em vitalidade. Nem vilões nem
vítimas, as personagens de Babenco se descolam de seu lugar de
presidiários e tornam-se pessoas com nomes e especificidades, deixam
de ser numerais para se tornarem protagonistas de suas próprias
vidas. De fato, a prisão não é tratada como a fonte
de onde brotam as histórias, mas como baú de memórias,
para onde convergem as vidas diversas de seus personagens. Nem marginal
romantizado, nem lixo vergonhoso da sociedade – são rostos, vozes
e vontades, cujo traço comum é o desvio. O desvio em relação
às normas de convivência construídas do lado de dentro
(não de fora...) da vida ordeira. Nenhum prisioneiro aparece como
inocente de sua ação criminosa, suas condenações
não são questionadas por tramas mirabolantes: do personagem
de Caio Blat (cujo ação violenta é fruto direto do
medo) aos irmãos assaltantes de carros-forte (cuja vida de alta
classe média aparece nas memórias de um deles), os prisioneiros
narrados pelo filme são tudo, menos simples, menos previsíveis.
O peso dramático da
cena em que Deusdette mata a queima roupa os estupradores de sua irmã
é narrada com rara simplicidade: nem glamour, nem pesar, "Ei,
amigo...", diz o menino, o outro se vira, disparos. Sem trilha sonora
frenética, sem gritos de horror – o impacto se dá justamente
por essa violência seca vinda de um personagem de cândida
figura e olhar juvenil. Nunca colocado como vítima, Deusdette não
se resume a seu ato, assim como seu ato não se resume a Deusdette
– mas estão um no outro, e o filme não nega isso no olhar
tranqüilo com que o rapaz encara seus companheiros, enquanto tem
sua história narrada pelo irmão de criação.
São histórias
desconexas, díspares, que não compõe um quadro sintético
– reiterando os temas das relações homem-mulher, traições
e amores, mas nunca sendo a mesma história... Essa talvez seja
a fonte de um certo desconforto diante do filme: onde estão as
respostas em Carandiru, os elementos funcionais mapeados? Onde
está a tese de seu olhar? É através dos olhos do
médico que entramos naquele espaço, através das histórias
contadas em consultórios (tão comuns nas vidas de todos
nós). É ali, nessa espécie de confessionário
urbano em que são narrados os hábitos e outros segredos.
O médico, esse monolito de sorriso sempre compreensivo, tem acesso
apenas a fragmentos do cotidiano, a partes de suas histórias, "causos",
sim, não tenhamos medo de nossa tradição oral. Ele
(o filme/médico/Babenco) não invade a vida de seu objeto,
ele o observa com zelo, com proximidade e tato...mas não quer abarcá-lo.
Uma aproximação interessada. Carinhosa mas contida. Dentro
e fora a um só tempo. Amoral. Voyeur. Asséptica?
Nesse cotidiano de pequenos
causos, as histórias de dor e violência vagueiam e se repetem
como mantras. São contadas de boca a boca como raízes verbais
de seu lugar fora-dali. Histórias de morte e de dor que não
mais causam o pavor e o pânico, mas fundam as memórias vivas
de quem tem sua vida suspensa no ócio absoluto de um presídio-depósito.
E se tornam folclore, atos de coragem, méritos. Desumanização?
Nunca. Banalização da violência? Certamente. Mas uma
banalização que Babenco faz questão de mostrar não
como traço inerente às psicologias daquelas pessoas ou mesmo
imperativos sociais sobre suas personalidades. A violência em Carandiru
aparece como elemento disperso e intangível, imbricando-se nas
vidas das pessoas – alcançando um assustador grau de naturalização.
Do homem que paga suas dívidas
para não morrer, ao homem que ganha dinheiro matando os presos
condenados por outrem, a violência se inscreve como gesto silencioso
e organizador de um ambiente abandonado – "São eles que mandam
aqui", diz o Diretor do Presídio ao médico. Isso não
significa que hajam presidiários no comando, dando ordens expressas
– mas que seus gestos de equilíbrio interno é que são
responsáveis pela manutenção da ordem, e não
a ação direta de policiais e carcereiros.
Malandros, traficantes, assaltantes:
todos inocentes, como ironiza o personagem do Velho (Milton Gonçalves)
– num bolo disforme onde comédia e tragédia vão e
voltam na tela, ignorando seus limites, alcançando o nonsense do
horror na cena em que o personagem de Wagner Moura mata seu meio-irmão
com água fervente, alcançando o cúmulo da graça
na relação entre Majestade e suas duas mulheres. Nenhum
personagem tem sua vida transformada em causa direta de qualquer crime,
traumas de infância não são desdobrados para justificar
violências. O personagem do matador profissional, um dos mais polêmicos
por sua violência brutal, é retratado com o mesmo tom das
historietas de Majestade, e sua conversão final é mostrada
com o exagero farsesco que marcam os cultos nos templos espalhados pelo
país, mas sem que Babenco caia nas tentações do desprezo
velado. A todos os personagens é dada a força de seu protagonismo,
mesmo naqueles momentos em que suas vidas claramente escapolem de seus
atos e condutas.
Babenco constrói o
filme com impressionante tranqüilidade e despudor. Traços
que tanto dão fruto à corajosa cena de Rita Cadillac (misto
de estrela pornô e educadora sexual) quanto resultam numa falta
de ânimo inegável (o que para alguns pode cheirar a desinteresse,
a outros, a um cinema interesseiro...). Para os romanos de plantão
(afoitos por abaixar ou levantar seus polegares), o filme se torna, então,
um prato cheio. Apinhado de banalidades para a alegria de seus detratores,
dono de cenas de beleza rara para o sorriso de seus defensores – Carandiru
deixa claro o desconjuntado desafio de Babenco: fazer um cinema de personagens
complexos, travestido em um novo cinema de "responsabilidades sociais"
generalizantes. Arquitetado nesse dilema, o filme deixa transpirar suas
intenções calculadas num mecanicismo narrativo pouco inspirado.
As cenas marcantes estão
ali, direção firme, atores precisos, mas o filme parece
por demais consciente de seus deveres sociais, e não tem coragem
de embarcar pesadamente em sua proposta inicial de reconstituição
de memórias. Depois de imerso naquelas vidas por uma hora de duração,
resolve tirar a cabeça de dentro d’água e narrar seu ato
final com uma falsa pretensão de relato direto. Aparência
de traição: como se tudo aquilo não tivesse passado
de isca emocional para a posterior reconstituição do massacre.
Pelo impacto estético e orgulho discursivo, o filme ignora sua
própria inteligência.
Optando por fazer do massacre
uma interrupção desumana daquele universo de vidas abandonadas,
transforma policiais em monstros e ignora o lugar da PM naquela rede de
gestos investigados. Se a impessoalidade da ação Estatal
sempre soou como a expressão cruel da opressão, o filme
se fragiliza ao apresentar-se como reconstituição histórica.
Babenco idealiza o presídio como um universo paralelo e equilibrado
em suas imperfeições. A ação da polícia
surge então como objeto de intervenção dolorosa e
brutal. Os relatos de ironias cruéis e barbaridades dos policiais
tomam de assalto a tela e levam todos a momentos extremos de ação:
clássico equívoco de uma dramaturgia envelhecida – o vício
pelos grandes eventos, pelas falas mais duras...E isso faz com que as
centenas de policiais que invadem o presídio ganhem espaço
apenas nas vozes "atraentes" dos atos de horror.
Falha, aliás, que
perpassa todo o filme: não há em Carandiru o cotidiano
modorrento do ócio, da solidão, do silêncio das celas.
Não há o não-contável tempo em que nada acontece
naquele turbilhão de vidas extremas – tempos mortos são
raros em Carandiru e isso é um erro fatal: ignorar um elemento
central no corpo daquele espaço, o Vazio. Babenco faz um filme
cheio demais, apinhado de boas histórias e belas personagens, mas
que se acotovelam por espaço. Na vontade de não fazer qualquer
concessão a um cinema de observação institucional,
o roteiro ignora elementos narrativos centrais ao pulso de vida daquele
território e fica sem espinha dorsal.
Não adianta colocar
cartela no final dizendo que o filme só ouviu os presos (mea-culpa
constrangedor...): fica clara a falta de critério de sua estrutura.
Partindo de um livro baseado em relatos cotidianos, o filme acaba por
transformá-los em meras ilustrações que darão
o "enchimento" preciso a seu grande e vaidoso objetivo: o espetáculo
brutal do massacre.
São histórias
preciosas, ainda assim. Belos contos que merecem ser resgatados da enxurrada:
a história de Majestade, de Lady Di, de Deusdette...O plano do
cão sobre os corpos. A escada lavada a sangue...A instigante cantoria
do hino nacional...Belos em si mesmos, perdidos uns dos outros, amarrados
com a mão pesada de um roteiro infeliz. O filme cai na tentação
da eternidade. De ser definitivo. Quer ser um "grande filme".
Quer o som totalizante da Aquarela do Brasil. Quer a implosão
de um ponto final.
Filme em CAIXA ALTA, CARANDIRU
não consegue romper com a ditadura dos grandes eventos de um cinema
pesado. Deixando de lado suas maiores riquezas, prefere ser um "filme
importante" (e fácil nessa assimilação). Prefere
esbanjar seu poder. Com belas figuras, corpos dramatúrgicos de
destaque...mas com uma incômoda artrite entre os ossos, que lhe
enrijecem os movimentos e lhe prescrevem a muleta emergencial do espalhafato.
Felipe Bragança
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