O Caminho das Nuvens,
de Vicente Amorim


Brasil, 2003

Todas as questões e opções de O Caminho das Nuvens, assim como os problemas derivados delas, são trazidos à tela nos primeiros minutos de filme. O plano inicial, nas nuvens, depois repetido ao final, dá uma pista: estamos em uma obra que, em seu transcorrer cheio de cenas de céu e de ícones religiosos, condenará o misticismo. A fé e a religião serão, constantemente, associados à alienação. Uma frase deixa claro esse vínculo logo de cara: o teimoso pai de família que junta mulher e filhos para, em cima de bicicletas, saírem estrada afora atrás de um emprego de "mil real", recusando todos os outros, diz acreditar na intervenção de seu Padinho Cícero. Quando a prole chega em Juazeiro, onde esperam receber uma graça, as imagens têm um tom delirante, como a trazer embaixo uma legenda: "acordem, seus ignorantes". Essa impressão é ressaltada por um zoom no olho cego de uma mulher, metáfora mais óbvia impossível. Povo crente, povo cego. A satanização da crença é ainda sublinhada pelo descaso da população local, que fatura em cima das romarias, mas não estende a mãos aos necessitados, e pelo diálogo-síntese do conflito entre o pai e o filho mais velho. "Quem dá aos pobres empresta a Deus", diz o primeiro. "E Deus paga quando?", retruca o filho.

Temos de sopetão uma tensão interna entre os fatos mostrados e a interpretação deles por parte do filme. O pai é logo exposto como fruto de sua ignorância e devoção religiosa, é analfabeto e crê no Padinho. Um sonhador à espera de uma intervenção divina. O sonambulismo de um de seus filhos simboliza sua própria condição: ele anda às cegas, não tem consciência de seus rumos. Já o filho mais velho, contrariado com a decisão maluca do pai de seguir viagem até o Rio e jamais aceitar emprego pago com migalhas, é o realista-pragmático. Quer fixar-se logo em um canto e aceitar sua condição sem reclamar. No entanto, embora tratado como piada, como doidivanas, o pai é um subversivo: não trabalha por pouco. Também não cruza os braços à espera de uma chuva de dinheiro enviada pelo céu. Move-se, desloca-se, vai atrás. Não tem nada de alienado: é apenas um empreendedor de suas próprias ambições. Sua religiosidade talvez seja cultural, não uma muleta para sua caminhada e sua viagem é uma tentativa de viabilizar uma pequena mobilidade social.

Caberá ao seu filho, visto como a consciência crítica da família, a submissão ao imobilismo. Ou seja: o filme legitima a estagnação e, ainda que sutilmente, debocha da luta por mudança. Tal postura ficará explícita no desfecho conciliador, quando, depois da longa jornada sobre rodas, o patriarca é convencido a desistir de seu projeto, o emprego de "mil real", por não haver mais esperança de ver sua micro-utopia realizada. Pode-se ver toda a trajetória como a aposentadoria do sonho do sertanejo. Resta-lhe o subemprego. Reacionarismo maior só foi visto recentemente no documentário Vida em Cana, de Jorge Wolney Attala.

Há outros dois choques de forças em O Caminho das Nuvens. Um deles diz respeito a esse conflito pai-filho. Em uma determinada passagem, por conta de um acidente, o filho, ao lado de seu irmão, encontra dinheiro em uma capela. Pega. Deseja usá-lo para comprar passagens de ônibus para toda a família. O dinheiro, afinal, é da Igreja, veio do povo para, via obras de caridade, retornar a ele. Nada mais legítimo que empregá-lo em boa causa, mas o pai não aceita. É movido por uma moralidade que impõe limites estreitos às suas atitudes. Nada mais distante de, por exemplo, O Homem Que Copiava, de Jorge Furtado, cujo plano final passa-se no mesmo cenário, o Cristo Redentor, mas dentro de outro contexto e ponto de vista. No filme de Furtado, os personagens, também dispostos a mudar de vida e levados a deslocar-se de sua terra, Porto Alegre, cometem atos ilícitos (roubo, assassinato). No entanto, por terem sido levados à essas transgressões por situações sobre as quais não têm controle, situações asfixiantes e anestesiantes, suas ações são perdoadas. Relativiza-se o julgamento sobre os meios usados para se atingir os fins porque esses meios são parcialmente determinados pelas causas. O Caminho das Nuvens faz traçado inverso: não importam as causas ou os fins. Apenas os meios. E estes devem ser retos. Um exemplo para todos os desabastados.

Ainda no começo é possível detectar um contraste entre material e opção estética. Amorim emprega uma câmera inquieta e uma dinâmica narrativa fragmentada. São características em parte escravas de um certo modismo da produção contemporânea, mas também parcialmente esforçadas para se vincular à uma tradição, a do Cinema Novo, que se faz notar tanto na premissa adotada (a saga de retirantes retomada de Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos) como na encenação pontuada pela busca de um clima turbulento (sua tentativa de aproximação com Deus e o Diabo na Terra Do Sol, ao qual podemos ser remetidos também pela condenação do misticismo). Nada mais deslocado que essa agilidade nervosa, porque o vínculo de O Caminho das Nuvens, intencional ou não, é com o sentimentalismo de Central do Brasil, de Walter Salles, e seu percurso físico pede outra forma, no mínimo mais sóbria. Ignorando o processo da viagem na estrada, com suas dificuldades, seus momentos de tédio, seus sofrimentos, expressos apenas em diálogos inseridos para compensar a ausências visuais dessas situações, o filme concentra-se nos eventos das paradas: é um climax atrás do outro. Essa pressa para se chegar ao objetivo final esvazia qualquer possibilidade de se construir uma dimensão de espaço e tempo. Embora a viagem dure seis meses, por alguns milhares de quilômetros, da Paraíba ao Rio, temos a impressão de que, no máximo, com boa vontade, a família saiu de Niterói.

Não é por acaso que os melhores momentos, embora essa escolha hierárquica seja sempre subjetiva, aconteça nas raras pausas da narrativa. São nestes trechos em que, sem fazer nada demais, descansando ou confraternizando, cantando e ouvindo Roberto Carlos, a câmera encontra com o filme. Amorim mostra-se hábil, nestas sequências, em filmar os atores. Mostra a reação dos personagens uns aos outros, os olhares de afeto, as expressões silenciosas, os significados despidos de ações. Esse tatear pela intimidade familiar, alavancado por pelo menos dois intérpretes sutis em suas composições (Wagner Moura e Ravi Ramos Lacerda), abrem brechas para imaginarmos que, em outro registro, qual filme poderia ter sido feito. Conclui-se que a habilidade do diretor, a qual faz questão de exibir o tempo inteiro, está empregada de forma equivocada. Hábil, portanto, não é. Pois o habilidoso sabe qual o método mais pertinente para lidar diferentes necessidades.

Cléber Eduardo