Bufo e Spallanzani,
de Flávio R. Tambellini

Bufo e Spallanzani, Brasil, 2000


Há um clichê principalmente mas não somente do mundo do cinema brasileiro, especialmente o mais recente, segundo o qual "Rubem Fonseca é muito cinematográfico". O problema é que entenderam tudo errado... De fato, o texto angustiante, ritmado, sujo, muitas vezes ofensivo e gráfico do escritor, lembra muito a linguagem do cinema, e é extremamente influenciado por ele. Não resta dúvida disso, portanto ele é sim, cinematográfico. O erro está em achar que isso torna o contrário obrigatoriamente verdade. Ou seja: levar Rubem Fonseca para as telas é, por si só, garantia de bom filme. E o erro deste raciocínio reside num fato simples: o diferencial de Rubem Fonseca, o que lhe dá um ritmo cinematográfico, está no que ele tem de mais literário, ou seja: seu domínio da linguagem escrita. Rubem cria com seus parágrafos tortos, suas palavras inexatas e exalando sujeira, o seu "cinema". Mas este não pode ser o mesmo ao virar "imagem e som", quer dizer: a linguagem cinematográfica em Rubem são palavras que remetem a imagens e sons. Neste Bufo e Spallanzani o que vemos é o equívoco-mor de tentar criar imagens e sons que remetem a palavras que remetem a imagens e sons e... resultam no vazio completo.

Tambellini optou por tentar assumir como paradigma o cinema policial mais clássico, aquele mais próximo de uma tradição do "cinema noir", fazendo portanto um autêntico filme de gênero. Bom, filme de gênero só pode ser julgado de acordo com as regras daquele que escolhe. E aí fica claro quão infeliz é o resultado do filme. Porque o cinema policial precisa obrigatoriamente ter um dos três (de preferência, mas não necessariamente, todos eles): trama ao mesmo tempo misteriosa e de prender na cadeira; clima; e/ou personagens cativantes. Ele consegue falhar em todos os três. A trama é não só óbvia, mas desinteressante e completamente fora do ritmo. As poucas revelações ao longo dela não causam qualquer interesse. O filme tenta desesperadamente criar clima, mas falta o domínio de mise-en-scene específica do gênero e da montagem para que se chegue sequer perto de segurar o filme só com isso. E os personagens são especialmente infelizes, completamente sem carisma, sejam eles vilões ou heróis.

Os dois fracassos, de adaptar Rubem Fonseca e de criar o gênero policial, estão completamente ligados. Porque, antes de tudo, Fonseca não é um escritor de tramas fantásticas. São, de fato, simples. Ele é que sabe as tornar fascinantes pelo seu uso da linguagem, do ritmo, de elementos bizarros. Assim, centrar-se na sua trama é um erro (cometido). Depois porque o clima e os personagens de Fonseca fascinam sempre na marginalidade, na sujeira, no bizarro, na surpresa. E o filme tenta acomodar duas impossibilidades: este clima com um "filmão". Ou seja, um cinema que busque o espectador sem nunca afrontá-lo. O que é impossível, pois Rubem Fonseca afronta sempre o leitor. Com isso, tudo fica no filme a "meia boca". O policial de Tony Ramos é grosso e turrão "mas nem tanto". Os policiais do departamento são corruptos e asquerosos "mas nem tanto". O personagem de José Mayer é frio e estranho "mas nem tanto". O de Gracindo Júnior é quase patético na sua vilania "mas nem tanto". E assim vai. Os casos absolutamente extremos são o de Minolta e do Professor (Isabel Guerón e Juca de Oliveira) porque são claramente "personagens de papel". Suas bizarrices e falas funcionam na língua escrita, na imaginação. Mas, personificados em carne e osso, pelo menos como são filmados aqui, simplesmente não funcionam nunca. Claro, é um prazer ver Guerón pelada o filme todo, mas ela consegue ser linda, pelada, e completamente não-erótica. De fato uma única cena no filme funciona dentro de uma lógica de Fonseca: a castração do escritor, crua, inesperada, violenta, exagerada, como a melhor escrita. Talvez seja uma forma simbólica de castrar o escritor, não o personagem, mas o adaptado.

Quando Tambellini tenta respeitar as palavras de Fonseca, os diálogos simplesmente soam "informativos", sem verdade. Quando tenta encadear a trama deixa furos homéricos (como afinal a indigente Minolta torna-se dona de pousada??). Quando tenta criar clima, faz o filme arrastado, desinteressante. Uma pena porque parece que ainda não se entende o que há de cinematográfico em Rubem Fonseca, nem mesmo com ele colaborando no roteiro. E com isso desperdiça-se algumas boas coisas, como a atuação de Tony Ramos, a música de Dado Villa-Lobos ou a própria nudez de Guerón. Só isso não mantém o interesse por duas horas num filme que comete o erro fatal que Rubem Fonseca jamais cometeu: se leva a sério demais.

Eduardo Valente