A Bruxa de Blair 2 – O Livro das Sombras, de Joe Berlinger

Book Of Shadows – Blair Witch 2, EUA, 2000


Existe algo de extremamente positivo no filme de Joe Berlinger. Ele sabe que para se criticar uma sequência ou um remake, é inevitável acabar comparando-a com o filme anterior. Ninguém, público ou crítico, deixará de fazer isso. Porém, ele sabe que nesse sentido tentar repetir o que antes era novidade é sempre o caminho errado, simplesmente por não ser mais novidade. Ao mesmo tempo, é desejável uma coerência mínima de princípios entre os dois filmes, na qual negar todo o trabalho anterior seria bobo. O caminho que ele escolhe lembra muito o de Sam Raimi nos demenciais A Morte do Demônio e Uma Noite Alucinante (vai ver que não por acaso passados numa floresta estranha): referir-se ao primeiro filme, mas assumindo a filiação o tempo todo.

E é aí que Berlinger acerta. Pois o que era Bruxa de Blair? Um filme de suspense pensado no grande público? De jeito nenhum. Era, de fato, uma brincadeira de linguagem, um jogo com o espectador: o que é verdade e o que é ficção no registro cinematográfico? O que significa o registro em vídeo para a linguagem do cinema ?(neste sentido talvez seja ainda, junto com Os Idiotas, o mais importante filme digital até agora) O quanto se pode enganar e até mesmo desafiar o espectador? Não custa lembrar a revolta que tomava conta da maior parte deles com o fato de "não verem nada", de "nada acontecer", e o desconcerto e verdadeiro terror que esta novidade criou, que foi o que levou o filme de underground para blockbuster, inclusive para surpresa de seus realizadores sim.

Quando Berlinger lança esta seqüência, a impressão, pelo menos para mim, é que era aí sim um jogo de mercado, que ia lucrar com o mito, mas sem nenhuma destas preocupações de linguagem e de comunicação com o espectador. A crítica inclusive, sempre esclarecida e brilhante, indicava isso. Mas, paguei para ver. E, para minha surpresa, não me decepcionei. Porque Berlinger afronta mais uma vez o espectador, e de forma talvez ainda mais sutil que o anterior, porque ele sabe que repetir a mesma coisa seria um fracasso total. Portanto, ele muda a linha de questionamento da relação do espectador com a linguagem clássica do cinema para uma ainda mais sutil.

Não é mais uma questão da "imagem verdadeira" em relação ao mundo real, uma imagem documental ou não, enfim. É a questão de onde mora a verdade dentro mesmo de um filme. Ou seja: o cinema nos ensinou que há certos registros que compõem sonhos de personagens, flashbacks, flashforwards, planos ponto de vista. E o espectador de hoje já lê estes planos com facilidade. Pois Berlinger brinca com isso o tempo todo: porque este precisa ser sonho, este verdade, este passado, este subjetivo, se é tudo uma grande mentira? Este é ainda hoje um grande tabu do espectador: ele permite os mais diferentes registros desde que saiba qual é qual dentro da narrativa. Os planos mais loucos, desde que sejam sonhos. Os planos mais bizarros, desde que flashbacks. Agora, se o diretor tira esta "legenda" que esclarece o que é o que, e deixa apenas uma grande confusão, aí o espectador se revolta, se sente traído e incomodado. Ele não quer brincar de teórico, que assistir uma história. E, assim como o espectador do primeiro filme se irritava com a brincadeira de verdade e ficção que nunca se ordenava, o deste novo se irrita com o jogo de registros onde ele nunca sabe quem é quem. Quem sonha, quem diz a verdade, quem matou quem, se é que alguém morreu. Não se paga R$8 para ter dúvidas.

De fato, se retirássemos a trama de suspense, personagens, etc, ambos os filmes lidam com uma questão de linguagem quase centenária no cinema: qual a relação da imagem cinematográfica com a Verdade? E este segundo filme vai mergulhar nisso também, embora por outro viés. Porque se no primeiro nós víssemos os personagens como tal (personagens), e não como a simulação de gente de verdade filmando, eles mesmos nunca eram questionados. O que eles filmavam era "verdade". Pois bem, este segundo filme vai lidar quase que teoricamente com esta idéia: o que um personagem diz, ou mesmo filma, é "verdade"? Quantas verdades podemos ter ao mesmo tempo? E, mais importante, será que isso importa, num meio que é pura manipulação mesmo nos documentários? Parece um exagero de crítico ficar enxergando isso tudo no filme, mas não é não. O diretor conscientemente discute estas questões, o que fica claro quando um personagem afirma que "a imagem de vídeo fala a verdade, cinema mente". Quer uma afirmação mais teórica dos efeitos de registro que permeavam o primeiro filme, e Berlinger tenta levar adiante? Da mesma forma, ele começa o filme usando o formato do telejornal, do documentário, dando aparência de verdade a aquilo que narra. Ou seja, o filme é sim uma reflexão sobre o local da verdade no cinema.

Mas, é claro, nem eu nem ele somos burros o suficiente para pensar que isso é uma tese de mestrado ou um filme de Straub. É também um lançamento americano, então claro que ele precisa construir uma trama, proporcionar sustos, criar uma intriga. É nestes pontos talvez que o filme possa ser considerado menos feliz, mas na verdade a impressão que fica é que o próprio diretor não se interessou muito em caprichar estes aspectos. De fato, ele nunca cria personagens simpáticos, não há qualquer relação de empatia com o público. Os personagens num primeiro olhar parecem "estereotipados": uma bruxa moderna, uma gótica, um louco. Mas um olhar investigativo revela naquele estereótipo um fascínio pelo artificial do cinema como linguagem. Ou seja, eles não parecem "exagerados", improváveis, pouco humanos, eles são! Porque afinal eles não são humanos, são sombras numa tela branca, e só. E Berlinger encena sua história em total coerência com seus pressupostos, como um conto exagerado e irreal, bobo como um filme de suspense para adolescentes, o que ele é! E aprofunda a lição que se pode tirar do filme anterior: nada assusta mais do que o desconhecido, o que não se conhece. E, ao inserir este jogo de verdade e sonho, de amnésia e inconsciência, ele joga com um dos maiores medos humanos: não saber o que aconteceu, o que está acontecendo.

Também é interessante perceber como Berlinger faz para montar esta história? Como relacionar-se com o filme anterior? O diretor (e, importante, roteirista também) enfrenta a pergunta: quais eram os grandes atrativos de Bruxa de Blair afinal? Um personagem inesquecível como o Freddy Krueger, um ator fantástico, uma linha narrativa? Não. Para início de conversa o mais interessante do filme era ele mesmo. Ou seja, o fenômeno que ele se tornou na vida real, e não algo dentro do próprio filme. A campanha de marketing na Internet, fenômeno de um filme baratíssimo virar o sucesso que foi, as reações do público ao filme. E a grande sacada de Berlinger é justamente usar isso como seu ponto de partida. Ou seja, ele localiza o seu filme no "mundo real", por assim dizer, onde a Bruxa de Blair é... um filme! Isso pode ser um caso inédito no cinema, porque você nunca vê um personagem referir-se ao que aconteceu antes como um filme. Mesmo em Pânico, onde nas duas seqüências brinca-se com isso, ninguém fala do filme em si como um filme. Há uma filmagem dos acontecimentos do primeiro Pânico, mas os personagens em si não se assumem coimo ficção. Aqui, não. Ao assumir o primeiro filme como tal, um filme, acaba aproximando-se mais dos espectadores.

Neste sentido, Joe Berlinger fez uma seqüência a altura do primeiro filme, mesmo desvirtuando-o completamente. E é uma pena que nossos críticos não consigam passar da discussão mais boba de coerência narrativa e de competência em causar sustos ou construir personagens ao discutir um filme como este. As ferramentas de análise continuam as mais simples, os cânones os mais óbvios, as conclusões as mais nulas. O fato é que a série Bruxa de Blair é até agora bem mais inteligente que seus críticos e muito mais malandra que seu público. E isso incomoda os dois, profundamente. Melhor então não gostar.

Eduardo Valente